segunda-feira, 6 de março de 2017

O Diabo e o Pedreiro

Havia em Santiago de Compostela, em tempos imemoriais, uma viela na qual os antigos puseram o singular nome de “Travessa do Cego e do Caolho”. Tal minúsculo logradouro, não mais que uma passagem curtíssima entre duas ruas de mediana expressão, abrigava apenas duas casas pequenas, uma de cada lado, cujas janelas e portas se entreolhavam preguiçosamente. Embora estreita a viela – mal podiam passar pelo escaninho duas pessoas magras lado a lado –, muitíssimos transitavam por ela, apesar da perene escuridão que lhe tornava limosas as pedras desgastadas, porque era uma via que encurtava abençoadamente o caminho dos romeiros, já tão cansados, que rumavam à Catedral. E o excêntrico nome da minúscula rua atraía a curiosidade dos viajantes, que estavam sempre a indagar sobre a sua origem. Mas os de Compostela não gostavam de saciar o desejo dos transeuntes. Ficavam eles quase sempre sem resposta, visto como teriam de ouvir falar do Diabo, e isto não era apetecível a uma cidade sagrada, cujo solo servia de repouso eterno ao Apóstolo do Senhor.


Hoje, a ruela não existe mais. Mas é possível que ainda permaneça na memória de alguns dos anciãos o fato que deu origem a um nome tão singular. Rico em anos, a vós contarei a história, conforme ouvi de meus antepassados, infelizmente mortos há mais de meio século.

Muito antes de tombarem os castelos aos rudes golpes dos Irmandinhos, já existia a rua de nossas preocupações. Nela morava, com mulher e filha, um homem sem dúvida esforçado, trabalhador incansável e pedreiro de profissão, mas não bem aquinhoado pelo Destino como seria de justiça e de mister.

Após um dia de árdua faina, resolveu Anselmo Carvalho – assim ele se chamava – gastar um pouco do que ganhara entornando uns bons copos de vinho numa das muitas tabernas que abriam as portas ao cair da noite.

Tendo entrado numa bodega, a dedo escolhida, porque o vinho não era batizado, e custava o que de fato valia, desceu uma escada em caracol e recolheu-se a uma mesa no porão, à frente do corredor abaulado que levava à adega embolorada.

O nosso homem, que não era de muita conversa, e vivia sempre carrancudo, sentia-se bem quando sozinho, porque assim podia padecer sossegado a própria amargura, saboreada a cada gole e juntamente com o azedume do vinho. Sacou do bolso um par de dados e ficou a jogar consigo mesmo, entediado.

De cima vieram os acordes de um alaúde. A voz que o acompanhava tirou-o, sim, da melancolia, mas o lançou num profundo aborrecimento. Reconheceu aquela voz repugnante. Era a do execrável Francisco Carreira, seu vizinho de porta, a quem odiava secretamente, por ser ele justamente a origem de toda sua infelicidade.

Anselmo ouviu os passos que vinham do cerne entenebrecido da adega e supôs que era o taberneiro retornando, como sempre trôpego. Mas, cabisbaixo, nem notou que alguém se sentara suavemente à mesma mesa. Apenas ouviu o comentário:

– Quem joga só, brinca com o Diabo.

O jogador estava prestes a enxotar o intruso, mas as palavras se imobilizaram na pontinha dos lábios, que se abriram num sorriso satisfeito, quando o recém-chegado prosseguiu:

– Francisco Carreira é mesmo um pedante. Vejo, pela sua reação, ao ouvir a voz tão desagradável, que vossa mercê também não gosta dele, e com justas razões.

–É verdade –respondeu Anselmo.

– Pois lhe digo que, apesar da indolência, ele tem muita sorte na vida. Órfão de um pai vagabundo e abandonado por uma mãe rameira, encontrou abrigo num mosteiro onde, em troca de uns serviços leves, teve esmerada educação. Depois, casou-se com uma bela mulher e fez-se feliz com ela e com os dois filhos pequenos. Trabalha leve e ganha muito.

–Muito mais sorte do que ele merece, tenho dito – concordou Anselmo.

–Acho que Deus quase nunca é justo – afirmou o outro, muito convicto do que dizia.

–Eu também – resignou-se Anselmo a dizer.

– Veja bem – prosseguiu o desconhecido. – Enquanto vossa mercê dá duro preparando a argamassa e assentando pedras pesadas, uma após outra, sob a fúria do Sol, ele, seu vizinho folgado, apenas por ter aprendido a ler e a escrever com os malditos monges cistercienses de Monte de Ramo, passa o dia todo na moleza, a garatujar cartas nas feiras, à sombra de uma tenda confortável e arejada. E, com esse trabalho suave e alegre, ganha ele, num só dia, porque cobra dos incultos os olhos da cara, o que vossa mercê, pingando de suor, leva uma semana inteira para ganhar. Não é justo.
– Isto mesmo. Não é justo.

– Enquanto ele tem uma linda mulher, uma morena de corpo voluptuoso, capaz de pôr em tentação até mesmo o santo arcebispo de Braga, a sua esposa engordou como uma porca, e é motivo de mofa até para os mendigos que se acumulam e infestam as escadas da Catedral. Vossa mercê sabia que todos a chamam, às escondidas, de leitoa?

– Sabia. Pura verdade. Onde está a justiça de Deus?

– Enquanto ele tem dois filhos varões, assegurando que se perpetue o nefasto nome de família, vossa mercê tem apenas uma mocinha tola, que come como um javali, e está fadada a enfear, ainda bem cedo, assim como a mãe. Decerto que, de tão gorda, não arranjará marido.

– Verdade absoluta. Como eu odeio esse homem! Se não temesse o cárcere, já o teria matado. E o pior é que, por morarmos frente a frente, tenho que suportar todos os dias a visão de sua vitória fácil e amargar a minha derrota sofrida. Acho que Deus é cego, porque não vê o meu merecimento. E é surdo, porque não ouve as minhas preces.

–Não, não é cego. Nem surdo. Ele vê e ouve tudo. Ele é apenas injusto. Mas podemos amenizar um pouco essa inconveniência.

– Como? Só se tu fores tão poderoso quanto Deus.

– Bem, não chego a tanto – disse humildemente o homem, embora o sarcasmo modulasse o seu tom de voz . – Mas tenho cá os meus poderes.

– És o Diabo? O Demo? O Dianho?

– Vossa mercê o diz.

– Se é a minha alma o que queres, não farei nenhum acordo contigo.

–Ora, ora... A sua alma não me interessa. Não posso fazê-lo feliz, mas posso, ao menos, fazer de vossa mercê um homem rico ou poderoso.

– Qual é o trato? Coisa boa não pode vir de ti.

–Peça-me vossa mercê o que quiser. O que lhe aprouver. Realizarei o seu desejo prontamente. Mas o que eu lhe der, darei em dobro ao seu inimigo.

Anselmo sorriu com a astúcia do Diabo. Se pedisse cinquenta mil moedas de ouro, cem mil reais tilintariam nos alforjes dourados do inimigo; se exigisse uma mão repleta de diamantes, o Diabo encher-lhe-ia as duas com grandes pedras cintilantes, de magnífico e dobrado valor; se pedisse um condado, o rival teria todo um reino para explorar. E, malgrado rico, malgrado poderoso, a sua amarga inveja seria ainda maior, mais intensa e insuportável, porque o rival gozaria o dobro da riqueza, do poder e do intolerável e ofuscante esplendor. Mas Anselmo vislumbrou, num lampejo, uma oportunidade de, sobrepujando o demônio em argúcia, vingar-se plena e definitivamente do desafeto, atirando-o à miséria irremissível. E pouco lhe importava o enorme – portentoso – preço da escolha. O brilho inefável da própria astúcia e o desejo nefando de uma vingança crua e desalmada falavam mais alto.

– O que ganharei, ele ganhará em dobro...

–Isto mesmo.

– Então te peço, solenemente, que me fures um olho.

O Diabo, embora surpreso com o estratagema do pedreiro, cumpriu a promessa. Eis o porquê do nome que foi dado à outrora famosa e útil travessa de Compostela.

fonte:http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/10/o-diabo-e-o-pedreiro.html