quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Final)



— Partiremos dentro de meia hora — anunciou o alto-falante, exatamente como um aviso comum de estação.

O trem parou. O som das rodas nos trilhos, o deslocamento de ar da sua passagem, aos quais Kaufman já se havia acostumado, desapareceram de repente.Só ouvia o zumbido do alto-falante. Nada via na escuridão. Então, um som sibilante. As portas estavam se abrindo. Um cheiro invadiu o carro, tão cáustico que Kaufman levou a mão ao rosto para se defender dele. Ficou em silêncio, a mão sobre a boca durante o que lhe pareceu uma vida. Não ver o mal. Não ouvir o mal. Não falar o mal. Então, viu um lampejo luminoso fora da janela. Desenhou a silhueta do batente da porta e aumentava gradualmente. Logo a luz no carro era suficiente para que Kaufman visse o corpo encolhido do Açougueiro a seus pés e os lívidos pedaços de carne dependurados em volta dele.



Ouviu um murmúrio também, vindo do escuro, fora do trem, um conjunto de vozes fracas, como vozes de insetos. No túnel, arrastando os pés na direção do trem, caminhavam seres humanos. Kaufman via seus contornos agora. Alguns carregavam tochas que queimavam com uma luz marrom mortiça. O ruído era talvez dos pés na terra úmida, talvez suas línguas estalando, talvez as duas coisas. Kaufman não era mais o homem ingênuo de uma hora atrás. Não podia haver dúvida quanto â intenção daquelas coisas que saíam das trevas e caminhavam para o carro do trem. O Açougueiro havia abatido os homens e as mulheres para
servir de alimento aos canibais, e eles estavam chegando, como que atendendo ao gongo do carro-restaurante. Kaufman inclinou-se e apanhou o cutelo do Açougueiro. O barulho das
criaturas aproximava-se cada vez mais. Ele recuou para o lado oposto das portas abertas, mas descobriu que as outras estavam abertas também, e o murmúrio vinha dos dois lados, aproximando-se dele.

Encolheu-se contra um dos bancos e estava a ponto de se esconder debaixo de um deles quando uma mão, magra e frágil, quase transparente, apareceu na porta. Não podia desviar os olhos. Não que estivesse paralisado pelo terror, como quando olhou pela porta entre os carros. Simplesmente queria ver. A criatura subiu no carro. As tochas atrás dela deixavam seu rosto na sombra, mas os contornos podiam ser vistos claramente. Não havia nada de notável. Dois braços, duas pernas, a cabeça de formato normal. O corpo era pequeno, e o esforço de subir no trem a fazia respirar asperamente. Parecia mais geriátrica do que psicótica; gerações de canibais fictícios não o haviam preparado para aquela comovente vulnerabilidade.

Atrás da primeira, criaturas semelhantes começaram a surgir das trevas,subindo no trem. Na verdade, entravam por todas as portas. Kaufman estava encurralado Sopesou o cutelo nas mãos, pronto para a luta contra aqueles monstros antigos. Uma tocha fora levada para o carro e iluminava os rostos dos líderes. Eram completamente calvos. A pele cansada dos rostos esticava-se sobre os ossos, brilhando com a tensão. Havia manchas de podridão e doença, e em alguns lugares o músculo tinha se transformado em pus negro, através do qual apareciam
os ossos da têmpora ou da face. Alguns deles estavam nus como bebês, os corpos, uma massa informe e sifilítica, quase assexuados. Os que tinham sido seios carregavam sacos ressecados pendendo dos ombros, os órgãos genitais murchos, quase inexistentes.

Mais impressionantes do que os nus eram os que usavam roupas. Kaufman percebeu logo que eram feitas de pele humana e pendiam dos ombros ou estavam amarradas na cintura. Não apenas uma, mas uma dúzia ou mais de peles amontoadas ao acaso sobre os corpos das criaturas, como patéticos troféus. Os líderes daquela grotesca fila para a refeição tinham chegado aos corpos, e as mãos delicadas tocavam a carne dependurada, passando de cima a baixo nos corpos sem pêlos, com gestos que sugeriam prazer sensual. Línguas dançavam fora das bocas, perdigotos caíam sobre a carne. Os olhos dos monstros dardejavam de
um lado para o outro, com fome e excitação. Finalmente um deles viu Kaufman.

Os olhos pararam por um momento, fixando-se nele. Uma expressão interrogativa surgiu no rosto, uma paródia de perplexidade:

— Você — disse a coisa. A voz era tão devastada quanto os lábios de onde saía.

Kaufman ergueu um pouco o cutelo, calculando suas chances. Havia uns trinta deles no carro e muitos mais lá fora. Mas pareciam tão fracos, e não tinham armas, a não ser pele e osso. O monstro falou outra vez, a voz bem modulada, sob controle agora, a entonação de um homem antes culto, antes encantador:

— Você veio à procura do outro, não é?

Olhou para o corpo de Mahogany. Evidentemente compreendeu a situação
com rapidez.

— Ele já estava mesmo velho — disse a criatura, os olhos lacrimejantes postos mais uma vez em Kaufman, estudando cuidadosamente.

— Foda-se! — disse Kaufman.

A criatura tentou um sorriso irônico, mas a técnica estava quase esquecida, e o resultado foi uma careta, expondo os dentes sistematicamente limados em ponta.

— Agora será você quem terá de fazer isto para nós — disse o monstro com seu sorriso bestial. — Não podemos sobreviver sem comida.

A mão deu pancadinhas na nádega de carne humana. Kaufman não tinha resposta para aquela ideia. Olhou com repugnância para as unhas que deslizavam entre as nádegas, sentindo o músculo tenro.

— Isto nos repugna tanto quanto a você — disse a criatura. — Mas somos obrigados a comer esta carne, do contrário morreremos. Deus sabe que não gosto dela.

Mas a coisa estava babando.

Kaufman conseguiu falar, afinal. Sua voz saiu fraca, mais por uma confusão de sentimentos do que por medo.

— O que são vocês? — Lembrou-se do homem barbado na lanchonete. — São algum tipo de acidente?

— Somos os patriarcas da Cidade — disse a coisa. — Bem como as mães, as filhas e os filhos. Os construtores, os legisladores. Nós fizemos esta cidade.

— Nova York? — perguntou Kaufman. — O Palácio das Delícias?

— Antes de você nascer. Antes do nascimento de qualquer pessoa viva.

Enquanto falava, a criatura passava as unhas sob a pele do corpo aberto, soltando a fina camada elástica do músculo apetitoso. Atrás de Kaufman, as outras criaturas estavam tirando os corpos das alças, as mãos acariciando com prazer os seios macios e os flancos. Eles também começavam a esfolar os corpos.

— Você nos trará mais — disse o primeiro. — Mais carne para nós. O outro fornecedor estava fraco.

Kaufman olhou para o monstro, incrédulo.

— Eu? — disse ele. — Alimentar vocês? O que pensa que sou?

— Deve fazer por nós, e para os mais velhos do que nós. Para aqueles de antes de a cidade ser imaginada, quando a América era só florestas e desertos.

A mão frágil fez um gesto, apontando para fora do trem.

Kaufman acompanhou com os olhos a direção apontada. Havia alguma coisa na escuridão que ele não vira antes; muito maior do que qualquer ser humano. O bando de criaturas abriu um espaço para que ele pudesse examinar melhor o que estava lá fora, mas seus pés não se moveram.

— Ande — disse o patriarca.

Kaufman pensou na cidade que tinha amado. Seriam aqueles realmente seus antigos fundadores, seus filósofos, seus criadores? Tinha que acreditar. talvez houvesse pessoas na superfície.— burocratas, políticos, todo tipo de autoridade — que conheciam esse terrível segredo, e cujas vidas eram dedicadas a preservação daquela coisa abominável, alimentando as criaturas, como os selvagens ofereciam ovelhas aos deuses. Havia uma terrível familiaridade naquele ritual. Despertava uma lembrança — não na mente consciente de Kaufman, mas no outro ego mais profundo, mais antigo.

Seus pés, não mais obedecendo à mente, mas à força do instinto para adorar, moveram-se. Atravessou aquele corredor de corpos e saiu do trem. A luz das tochas iluminava agora fracamente a escuridão lá fora. O ar parecia sólido, espesso, com o cheiro de terra muito antiga. Mas Kaufman não sentia cheiro algum. Inclinou a cabeça para a frente, o máximo que podia fazer para não desmaiar outra vez. Lá estava; o precursor do homem. O americano original, a quem a terra pertencia antes mesmo dos Passamaquoddy ou dos Cheyenne. Seus olhos, se é que aquilo tinha olhos, estavam fixos nele.

Kaufman estremeceu, Seus dentes bateram uns contra os outros. Ouviu o ruído da anatomia daquela coisa: tiquetaqueando, estalando, soluçando. Ela fez um pequeno movimento no escuro. O som era apavorante. Como urna montanha acomodando-se.

O rosto de Kaufman estava erguido para o vulto e, sem pensar no que fazia, sem saber por que, caiu de joelhos na imundície na frente do Patriarca dos Patriarcas. Cada dia da sua vida o havia levado para aquele dia, cada movimento apressando-o para aquele instante incalculável de terror sagrado. Se houvesse luz suficiente naquele inferno para ele ver tudo, talvez seu coração, frágil coração, tivesse explodido. Porém, vendo só o que podia ver, sentiu
um adejar tremulo no peito. Era um gigante. Sem cabeça ou membros. Sem nenhum traço humano, sem um órgão que tivesse sentido, sem sentidos. Se ela parecia com alguma coisa, era com um cardume de peixes.

Milhares de bocas movendo-se em uníssono, brotando, florescendo murchando ritmadamente. Era iridescente como madrepérola, mas as vezes predominava uma cor mais profunda do que todas as que Kaufman conhecia e cujo nome sabia!

Era tudo que Kaufman podia ver, seria mais do que ele desejava ver. Havia muito mais na escuridão, bruxuleando e estalando. Mas ele não podia olhar mais. Virou-se e nesse momento urna bola de futebol foi atirada do trem e rolou, parando na frente do Patriarca. Não menos ele pensou que era uma bola, até olhar com mais atenção e reconhecer uma cabeça humana, a cabeça do Açougueiro. A pele do corpo fora arrancada em tiras. A cabeça cintilava sangrenta diante do seu Senhor. Kaufman desviou os olhos e voltou para o trem. Cada parte do seu corpo parecia estar chorando, exceto os olhos. Estavam quentes demais com o que tinham visto, e as lágrimas ferviam e se evaporavam neles. Lá dentro, as criaturas já tinham começado a ceia. Uma delas arrancava pitéu doce e azul do olho de uma das mulheres. Outra escava com uma mão na boca. Aos pés de Kaufman jazia o corpo decapitado do Açougueiro sangrando ainda profusamente onde fora cortado o seu pescoço.
O pequeno patriarca que havia falado antes, colocou-se na frente de Kaufman.

— Vai nos servir? — perguntou ele, gentilmente, como se pedisse a uma vaca para segui-lo.

Kaufman olhava para o cutelo, o símbolo da profissão de Açougueiro. As criaturas saíam do carro agora, arrastando os corpos semi-devorados. As tochas saíam com elas, e a escuridão voltava ao interior do carro. Mas antes que as luzes desaparecessem completamente o patriarca estendeu o braço e segurou o rosto de Kaufman, obrigando-o a olhar para a própria imagem refletida no vidro sujo do carro. Era um reflexo fraco, mas Kaufman pôde ver o quanto tinha mudado. Mais pálido do que se pode imaginar qualquer ser humano e coberto de sangue e sujeira. A mão do patriarca segurava ainda com força o rosto de Kaufman com o indicador enfiado na sua boca até tocar-lhe a garganta. Kaufman sentiu náusea, mas
não tinha forças para repelir o ataque.

— Deve servir — disse a criatura. — Em silêncio.

Tarde demais Kaufman compreendeu a intenção daqueles dedos... De repente a criatura agarrou sua língua e a torceu. Com o choque Kaufman largou o cutelo. Tentou gritar, mas não saiu nenhum som. Sua garganta estava cheia  de sangue, ouvia a carne sendo rasgada, foi dominado pelas convulsões da agonia. Então a mão saiu da sua boca, aqueles dedos vermelhos e cobertos de saliva diante dos seus olhos, segurando a língua entre o polegar e o indicador. Kaufman não podia falar.

— Deve servir. — disse o patriarca, e enfiou a língua de Kaufman na própria boca, mastigando-a com evidente satisfação. Kaufman caiu de joelhos, vomitando o sanduíche.

O patriarca já ia desaparecendo na escuridão; o resto dos anciãos já havia regressado também ao covil, para outra noite de espera.

O alto-falante estalou.

— Para casa — disse o maquinista.

As portas se fecharam. Sibilando, e o som do motor fez vibrar o trem. As luzes piscaram ao se acenderem, apagaram-se e acenderam outra vez. O trem começou a se mover.

Kaufman estava deitado no chão, as lágrimas escorrendo pelo rosto, lágrimas de dor e resignação. Ia sangrar até a morte, resolveu, ali mesmo onde estava. Não lhe importava morrer agora. Era, afinal, um mundo sórdido.

O maquinista o acordou. Kaufman abriu os olhos. O rosto acima do seu era negro e amistoso. Deu um largo sorriso, Kaufman tentou dizer alguma coisa, mas sua boca estava selada com sangue seco. Agitou a cabeça, como um retardado que estivesse tentando falar. Conseguiu apenas rosnar... Não estava morto. Não tinha sangrado até a morte. O maquinista o ajudou a se ajoelhar, falando como se ele fosse um garoto de três anos.

— Você tem um trabalho a fazer, meu velho; eles estão satisfeitos com você.

O maquinista lambeu as pontas dos dedos e passou-os nos lábios inchados de Kaufman, tentando abri-los. Muito o que aprender. Muito o que aprender. Conduziu Kaufman para fora do trem. Estavam numa estação que ele nunca vira antes. Toda de azulejos brancos, absolutamente imaculada; o Nirvana de um guarda de estação. Não havia grafitti desfigurando as paredes. Não havia guichês de passagens, mas também não havia portões nem passageiros. Uma linha onde passava apenas o Trem da Carne.

Uma turma de faxineiros lavava com mangueiras o sangue dos bancos e do chão do trem. Alguém tirava a roupa do corpo do Açougueiro, preparando-o para ser despachado para Nova Jersey. Em torno de Kaufman, todos trabalhavam. Um leque da luz do alvorecer entrava por uma abertura no teto da estação. Partículas de poeira dançavam nos raios de sol, girando e girando. Kaufman olhou para elas, enlevado. Não via uma coisa tão bonita desde criança. Linda poeira. Girando e girando, girando e girando.

O maquinista conseguiu finalmente separar os lábios de Kaufman. A boca estava ferida demais para se mover, mas pelo menos podia respirar com facilidade. E a dor começava a diminuir. O condutor sorriu para ele, depois voltou-se para os homens que trabalhavam na estação.

— Quero apresentar-lhes o substituto de Mahogany. Nosso novo Açougueiro — anunciou ele.

Os trabalhadores olharam para Kaufman. Havia nos rostos deles uma certa deferência que o agradou. Kaufman olhou para a luz do sol que o envolvia agora. Moveu a cabeça, indicando que queria ir para cima, para o ar livre. O maquinista fez um gesto de assentimento e o conduziu por uma escada, depois por um corredor e, afinal, para fora, para a calçada. O dia estava lindo. O céu brilhante sobre Nova York, riscado por filamentos de nuns rosa pálido e o ar tinha cheiro de manhã. O dia estava lindo. O céu brilhante sobre Nova York, riscado por filamentos de nuvens rosa pálido, e o ar tinha cheiro da manhã.

As ruas e avenidas estavam praticamente vazias. Ao longe, um táxi ou outro passavam no cruzamento, o motor murmurando; um corredor passou no outro lado da rua. Logo aquelas calçadas desertas estariam cheias de gente. A cidade continuada sua vida, na ignorância do que havia embaixo dela sem saber ao que devia sua existência. Sem hesitação, Kaufman caiu de joelhos e beijou o asfalto imundo com os lábios sangrentos, silenciosamente jurando lealdade eterna a sua continuação.

O Palácio das Delicias recebeu a adoração sem comentários.

Fonte: Livro "Livros de Sangue"
Autor: Clive Barker