terça-feira, 28 de março de 2017

Você já quis matar alguém?

Quem nunca tirou uma vida não pode entender as razões de quem já o fez. Por isso, não tente aplicar a mim as suas noções de justiça, necessidade ou prazer. Vou contar a minha história não para que você me julgue, mas para que a experimente, se for capaz.

Meu pai sempre teve armas em casa. Era colecionador. Eu nunca pusera um dedo em nenhuma, pois sabia que o velho me arrancaria o couro, talvez literalmente. Quando íamos para o sítio da família no interior, ele sempre levava pelo menos uma espingarda de chumbinho. Eu o observava acertar alvos parados, depois móveis, e aquilo podia proporcionar horas de agonia para minha mãe, que ficava mais pálida a cada tiro ouvido a distância. Não é um esporte para pessoas frágeis.

Nosso caseiro era um homem de uns 50 anos, com cara de mais de 60, sem esposa, filhos ou dinheiro, que meu pai empregara por piedade. Mas em pouco tempo os vizinhos do interior começaram a nos telefonar em São Paulo queixando-se de que o homem aprontava nos botecos da cidadezinha, completamente bêbado, arranjando encrenca com os peões. Quando contratamos o pobre viúvo, não sabíamos que era um alcoólatra.


Nas férias de verão, fomos para lá e assim que chegamos demos com a horta nos fundos da casa, de onde mamãe tirava seus temperos e saladas, mastigada por pássaros e insetos. O gramado, amarelo e sem viço, e o pomar, forrado de frutas podres que ninguém havia colhido.

O homem foi despedido. Lembro-me dele naquela manhã, sóbrio, protestando. Papai não cedeu. Era um homem firme. Vi o velho ir embora cabisbaixo e senti uma ponta de estranha satisfação.

Na noite seguinte, minha mãe recolhia roupas do varal quando eu a ouvi gritar. Corri para fora antes de meu pai, mais curioso do que aflito, e vi o antigo caseiro segurando-a pelo braço. Ele não passava de um bêbado gritando bobagens, mas ela tremia de pavor.

Eu tinha sete anos e me lembro de tudo isso e do que veio depois tão bem quanto a gente consegue lembrar de quando tinha essa idade. Comecei a xingá-lo, velho feio e nojento, os piores nomes que um rapazinho de família sabia. Papai saiu da casa. Nas mãos, tinha a espingarda. Nos olhos, ódio.

Minha mãe escapou e me arrastou para dentro, trancando-me no quarto. Me deixa sair, eu pedia, quero ajudar papai. Mas sabia que ele não precisava de nenhuma ajuda. Eu queria ver o que ele ia fazer com o homem. Mamãe, não. Por isso, ficou apenas escorada do lado de fora da minha porta, impedindo que eu saísse ou que olhasse pelo buraco da fechadura.

Da janela, entre as frestas da veneziana, vi meu pai levar o velho em direção ao bosque que ficava perto da casa principal, apontando a arma para sua nuca. Abri a janela em silêncio, saltei na grama e os segui à distância.

Fui arranhado por uma dezena de trepadeiras e samambaiaçus que formavam o que para mim parecia uma verdadeira mata pré-histórica, repleta de sons noturnos e brilhos incertos. Andamos por muito tempo, a noite era quente, eu suava de calor e de excitação. Atravessamos muitos trechos de mata densa até que vi os dois pararem. Eu me escondi atrás de um tronco, temendo que me vissem. Não consegui enxergar mais nada. Ouvi suas vozes baixas, sem entender o que diziam. Então, um tiro, e outro, e mais outros. Depois, silêncio.

Quando finalmente achei seguro deixar meu esconderijo, meu pai estava tapando um buraco com terra e folhas. Não havia mais sinal do nosso antigo caseiro.

Ele se ergueu e acho que quase gritou quando me viu ali parado.

Não se preocupe, papai, eu disse a ele. Não vou contar nunca pra mamãe que você matou o homem ruim.

Ele não disse nada. Andou até o córrego no meio do bosque, lavou as mãos, enxugou-as nas calças. Quando alguém ameaça sua família, você fica louco, murmurou, creio que tentando convencer a si mesmo. Só então sorriu um sorriso forçado. Vai ser nosso segredo, disse.

Contou a mamãe que tinha dado um dinheiro para o velho ir embora e que se aparecesse lá de novo nós chamaríamos a polícia imediatamente. Isso bastou para ela.

Não falamos mais sobre aquilo e eu não perguntei a ele se tinha remorso de ter matado o velho. Mas muitas vezes me peguei deitado na cama imaginando o que ele havia sentido. Se seria excitante apontar uma arma para outra pessoa. Se seria divertido ouvi-la pedir misericórdia. Se seria prazeroso como nenhuma outra coisa olhá-la nos olhos, ver o terror em seu rosto e, ainda assim, disparar o gatilho.

Quando eu tinha uns doze anos meu pai me achou homem o suficiente pra aprender a usar a espingarda de chumbinhos. Tecnicamente, não é nem mesmo uma arma de fogo, pois não dispara movida a explosão, mas a ar comprimido. É coisa pra matar passarinho mesmo. Um brinquedo. Em meus treinos solitários eu imaginava como teria sido matar alguém com aquilo. Um tiro dado bem de perto num dos olhos funcionaria? Seria suficiente para penetrar no cérebro e arruinar tudo? Quem sabe com o cano colado na têmpora da vítima? Ou dentro da sua boca, o chumbinho rasgando a garganta por dentro, causando hemorragia, asfixia?

Fui experimentar minhas teorias. Havia um cão vira-latas que sempre aparecia pelos arredores, certo de receber restos de comida nos sítios. Encontrei-o sob uma árvore na estrada e mirei no olho. Infelizmente o tiro pegou na orelha, e o animal saiu correndo e ganindo, sem que eu conseguisse acertar um outro tiro num ponto mais vital. Mas no mesmo dia tive a sorte de encontrar outro alvo interessante. Estava bem no meio da estrada, semi-atropelada por alguma roda veloz. O corpo estava esmagado no local onde deviam ficar as entranhas. Era uma cascavel, arisca e belíssima em sua agonia contorcionista. Fiquei longe o suficiente para evitar a última mordida do bicho. Mirei bem na cabeça que se movia. Acertei em cheio! Depois, com meu canivete, cortei fora o chocalho da cobra, meu troféu. Carreguei por muitos anos o chaveiro que meu pai fez para mim com ele.

Logo, porém, a velha espingardinha perdeu a graça e procurei outras distrações. Com o tempo, como era de se esperar, comecei a olhar para as garotas com olhos que já não eram de menino. Aos quinze, tive essa namoradinha completamente doida. Era maior de idade e me mostrou o cigarro, a bebida, as drogas e o sexo, de longe a coisa mais interessante da lista. Seu sexo era bizarro e eu, um parceiro perfeito. Fazíamos teatro na cama, empregando uma dezena de brinquedos menos inocentes do que chicotes de couro. Verdade, ela mandava em mim e suas ordens eram: me chama de puta, me bate, me fode. Um dia, ela se jogou no chão e me pediu pra chutá-la. E eu chutei. Não parei de chutar quando ela pediu. Joguei-me sobre ela e apertei seu pescoço até não agüentar mais suas unhas enormes me arranhando os braços.

Ela se levantou ofegando, xingando, juntando as roupas, jurando que ia prestar queixa contra mim na Delegacia da Mulher. Eu disse a ela que a denunciaria antes como corruptora de menores, traficante, prostituta e sei lá mais quantas bobagens que eu era capaz de elaborar e que o seu estilo de vida confirmaria.

A polícia nunca foi me procurar por isso. Nunca mais vi a garota.

Sexo, drogas, badalação: nada disso me satisfazia. Eu levava em mim algo insaciável desde aquela noite no sítio, anos antes. Tinha vontade de procurar meu pai e perguntar tudo. Queria saber sobre o prazer, a sensação de ser superior àquele homenzinho desprezível e esmagá-lo feito uma barata, a noção de ser poderoso, maior do que a lei, a moral, a vida. Mas sabia que ele jamais confessaria.

Eu ansiava por aquilo que faria meu sangue ferver de verdade, algo que ensaiou sua aparição quando acertei o cão vadio, quando acabei com a agonia da cobra, quando arranquei as pernas dos camundongos no fundo da casa… Eu não falei dos camundongos? Eles me entretiveram por alguns anos. Eles e os pardais nas arapucas. Mas isso não é importante. O importante era aquele calor, aquele júbilo doido que tomou conta de mim quando quase sufoquei minha namorada. Essas coisas todas me davam prazer, estar no limite e, quem sabe, cruzá-lo. Mas eu não conheci o êxtase até aquela noite, seis anos atrás.

Eu havia chegado aos dezoito e saía há alguns dias com essa menina bonita, menor de idade ainda e, como toda menina, ansiosa para ser mulher. Sei o que estão pensando: chave de cadeia, certo? Como nem eu nem ela queríamos a intromissão de nossos pais nesse assunto, estávamos nos vendo às escondidas.

Fomos sozinhos a uma casa noturna no centro da cidade. A banda era boa, mas ela prestava mais atenção ao que eu cochichava ao seu ouvido. Soltei meia dúzia dessas bobagens românticas que tornam o caminho entre as pernas das garotas mais largo e rápido. Depois, meus verbos ficaram mais ousados, lamber, apertar, chupar. Ela aceitou voltar comigo para o carro. Vagamos por algum tempo até chegar a um local maravilhosamente deserto, cheio de casebres e terrenos baldios, nada convidativos a curiosos.

Ela era mesmo bonita. Rosto de criança e corpo de mulher, combinação irresistível, e eu não resisti. Inclinamos os bancos e eu comecei a beijá-la. Mas, volúveis, as mulheres acham que podem mudar de idéia no meio do caminho que aceitaram seguir, e ela, boa moça de família, não deixou minhas mãos continuarem roupas adentro, me chamou de apressado, calma que não é assim, eu sou virgem…

Suas mãozinhas prepotentes me empurraram. Era tudo de que eu precisava.

A verdadeira excitação cresceu em mim de forma explosiva e eu me joguei sobre ela. Ela ameaçou gritar, tampei sua boca com uma mão, com a outra eu puxei sua saia, examinei depressa o que escondia. Ela mordeu a mão que a amordaçava. Sem pensar, acertei um soco no seu rosto e travei os dedos em volta da sua garganta. Meu casaco grosso de couro impediu que ela me arranhasse, mas eu não pensava nisso na hora. Ela se debatia. Eu me lembrei dos pernilongos quando a gente os segura por uma perna e vai arrancando as outras devagar. Seus olhos enormes, arregalados, nada entendiam, só suplicavam, a boca muda, aberta como um mundo de novas sensações para mim. Vi as pupilas tremerem e sumirem por sob as pálpebras e a língua pender entre os lábios.

Aproximei meu rosto do seu: não respirava mais. Ainda penetrei o aperto de seu corpo seco, ainda quente, mas logo desisti. Aquilo não tinha mais graça; eu já havia apaziguado a minha sede.

Rodei por muito tempo na via que margeia o rio, madrugada afora, até sair da cidade. Antes que o sol nascesse e o movimento voltasse às ruas, arrastei minha vítima para a margem do rio, fiz uma chupeta no tanque do meu carro e despejei um pouco de gasolina no corpo. Acendi um pedaço de papel com meu isqueiro e joguei-o sobre o corpo. Creio que consegui ao menos desfigurá-lo e apagar o meu toque na sua pele já roxa. Era suficiente; empurrei-a para dentro da água imunda. Achei impressionante ver como foi fácil. Especialmente nos dias seguintes, quando ninguém da polícia veio me procurar.

Mas não resisti a guardar comigo o pingente que ela levava no pescoço. Um pequeno troféu, que guardei junto com o chocalho da cascavel no fundo de uma gaveta.

Naquela noite, conheci a verdadeira paixão da minha vida: a morte. A morte estampada nos olhos de quem encara seus instantes finais, a vida se perdendo sem defesa entre minhas mãos. Isso era poder. Isso era o gozo supremo.

E, sabendo disso, não pude mais parar.

Elas não precisavam ser garotinhas. Bastava que fossem jovens, de pele ainda tenra e olhos grandes nos quais eu pudesse ver meu rosto refletido antes de as pupilas se tornarem baças. A emoção de seduzi-las, levá-las comigo, despistar todos os olhares e então vê-las dar seu último suspiro me dominava completamente. A lábia, a transgressão e então o júbilo da vitória. Sempre guardava uma lembrancinha, anel, presilha de cabelo, até cadarço de tênis, na falta de algo melhor. Não podia manter um registro escrito da minha marca, pois seria muito perigoso, então essa era a minha forma de contabilizar. Minha mãe uma vez até encontrou o estoque e eu expliquei tranqüilamente que eram lembranças de minhas ex-namoradas. Chegaram a um total de doze peças. Uma para cada garota.

Sei o que você está pensando. Se não sinto culpa. Se nunca pensei na dor dos pais, maridos ou bebês dessas mulheres. Preciso confessar que não. O Doutor Junqueira diz que sou um psicopata, o que significa mais ou menos que sou incapaz de sentir remorso. É uma explicação tosca, mas basta para entenderem o que há de errado em mim – ou diferente, como prefiro dizer. Tem alguma coisa no meu cérebro, como uma peça fora do lugar, que me torna imune a esse complexo de culpa que todos tentam me incutir. Não sei se culpa é um sentimento ou um fato. Se for um fato, sim, eu assumo minha culpa, mas, se for um sentimento, será inteiramente desconhecido para mim até o dia da minha morte. Não foi erro do meu pai por me passar os valores errados ou mesmo da minha mãe por ser uma criatura fraca. Eu já nasci assim, diz o bom doutor.

Gosto do Dr. Junqueira. Ele é engraçado. Vejo o suor se acumular sobre sua boca e a caneta tremer na mão se ele anota alguma coisa enquanto conto detalhes do meu modus operandi. Desse jeito, acho que não vai durar muito como psiquiatra aqui dos detentos. Não sei se a reação é de nojo ou de prazer. Pra mim, é um pouco de cada. Os homens se escondem sob a moral. O doutor é assim, como meu pai.

Para que não digam que sou completamente insensível, saibam que sempre amei meu velho. Quando terminei a faculdade, ele me levou para o sítio, que eu já não visitava há alguns anos, e para a farra na cidadezinha próxima. Eu era oficialmente um homem. No bar, me falou de trabalho, de casamento, de família, de todas essas coisas que tornam um sujeito digno e que ele havia sonhado para mim. Bebemos muito, talvez demais, e, quando chegamos em casa, de madrugada, fomos praticar tiro em latas de cerveja que íamos esvaziando na boca à medida que precisávamos de novos alvos. Dificilmente acertávamos algum. Eu estava excitado e descuidado e comecei a fazer perguntas sobre aquele caseiro que ele havia liqüidado há muitos anos. Ele ficou sério apesar do álcool, mas insisti. Perguntei se ele se sentira vingado porque o desgraçado assustara mamãe. Se ele se sentira superior a ele ao dar-lhe ordens sob a mira da espingarda. Se tinha se sentido um homem de verdade ao mandar o desgraçado para o inferno. Porque estava bêbado, ele riu e disse que sim, e que o velhote era um grande filho da puta que já tinha olhado gozado para mamãe mais de uma vez e por isso merecia mesmo uma bala no meio dos cornos.

Então, finalmente, perguntei quantos tiros haviam sido necessários e onde haviam acertado. Se a morte fora rápida ou ele agonizara. Ele se deixou embarcar naquela conversa que em qualquer outra ocasião o teria deixado horrorizado. Aquelas respostas eram o meu santo grau. Nunca me senti tão próximo dele como então.

Eu não tinha a paixão de papai por armas. Preferia trabalhar com as mãos. Expliquei isso a ele quando contei sobre a minha coleção de lembranças das meninas. Falei a ele do meu prazer como um rapaz fala do seu primeiro amor. Ele ouviu em silêncio por alguns instantes e demorou para compreender. Quando o fez, seus olhos se arregalaram e ele começou a gritar comigo. Seu louco, seu desgraçado, oh, filho, não o meu filho, por quê, Deus, e outras palavras que não faziam o menor sentido. Ele andava de um lado para outro, me xingava e murmurava Deus, Deus, o que vou fazer?

Na minha ingenuidade eu confessara a meu pai o que realmente movia minha vida e agora ele me odiava. Disse num ímpeto que ia me denunciar. Você não vai fazer isso, respondi, sou seu único filho, não vai me mandar para a prisão.

Ele berrou, me chamou de criminoso, você tem de pagar pelo que fez. Eu disse que se ele me denunciasse eu contaria à polícia sobre o homem que ele havia matado. Mostraria até o local onde ele estava enterrado. Eu havia visitado aquele túmulo no bosque por anos a fio, em segredo, pensando na vida e na morte.

Ele me olhou com medo, vacilou. Não importa, disse então, e me deu as costas. Tive receio de que fosse para dentro buscar as chaves do carro e correr para a delegacia mais próxima. Papai, chamei, mas ele não se virou. Então, atirei nas suas costas.

Sem mirar, acertei-o entre os ombros e ele gritou de dor. Só então se voltou, e no ímpeto caiu sentado na grama. Eu me aproximei, recarreguei a espingarda, encostei-a na sua têmpora e disparei. Não me lembro de carregar de novo e de novo a arma, mas sei que o acertei repetidas vezes no rosto até ele parar de tremer.

Não. Eu não gostei de matar papai. Eu o amava de verdade. Mas ele ameaçou algo que eu amava mais ainda e tive de fazer. Tive. Não sinto culpa.

A polícia não engoliu minha história de que, quando acordei na manhã seguinte, papai já havia saído da casa no sítio e eu não o vira mais desde então. Mamãe, sempre tão frágil, desta vez decidiu ser firme. Papai tinha amigos entre gente graúda da capital e ela insistiu com todos eles, pedindo ajuda, influência, dinheiro, o que fosse necessário.

Não foi preciso muito. Não sei se ela já suspeitava de mim, mas um dia mostrou à polícia os meus troféus secretos e um oficial identificou o pingente que a minha primeira vítima usava numa foto. Acabei sendo detido. Mostraram minha coleção às famílias de algumas garotas desaparecidas, que reconheceram uma aliança de casamento, um chaveiro e uma caneta de luxo. Depois disso, confessei tudo.

Não sei realmente se o jornal publicará esta carta aberta, mas sei que alguém na redação há de lê-la. Como você, que me lê agora. Se você acredita que sou louco, tente, uma vez na sua vida vazia, colocar-se no meu lugar e pense de novo nesta pergunta: você já quis matar alguém? Não? Mentira. Apenas não teve chance. O que faria se estivesse lá? Comigo? Em mim? A vítima à sua frente, o desejo de matar na alma e todo o poder para isso em suas mãos.

A morte está em nós como a fome, a sede ou a libido. Está no jogo da sobrevivência. Livre-se dos seus valores morais, das suas leis e principalmente do seu medo de ser pego. Diga, o que sobra?

O que sobra sou eu.

fonte:http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/12/voce-ja-quis-matar-alguem.html

domingo, 26 de março de 2017

O Rei Peste - Edgar Allan Poe


Por volta da meia-noite de um dia do mês de outubro, durante o cavalheiresco reinado de Eduardo III, dois marinheiros pertencentes a tripulação do Free and Easy (Livre e Feliz), escuna de comércio que trafegava entre Eclusa (Bélgica) e o Tâmisa, e então ancorado neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem sentados na ala duma cervejaria da paróquia de Santo André, em Londres, a qual tinha como insígnia a tabuleta dum “Alegre Marinheiro”. embora mal construída, enegrecida de fuligem, acachapada de todos os outros aspectos, semelhante às demais tabernas daquela época, estava, não obstante, na opinião dos grotescos grupos de freqüentadores ali dentro espalhados, muito bem adaptada a seu fim.

Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais interessante, se não o mais notável.

O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se dirigia, chamando-o pelo característico apelido de Legs (Pernas) era também o mais alto dos dois. Mediria talvez uns dois metros e dez centímetros de altura e a inevitável conseqüência de tão grande estatura se via no hábito de andar de ombros curvados. O excesso de altura era, porém, mais que compensado por deficiências de outra natureza. Era excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros, substituir, quando bêbedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir de pau de bujarrona, se não estivesse embriagado. Mas essas pilhérias e outras de igual natureza jamais produziam, evidentemente, qualquer efeito sobre os músculos cachinadores do marinheiro. Com as maçãs do rosto salientes, grande nariz adunco, queixo fugidio, pesado maxilar inferior e grandes olhos protuberantes e brancos, a expressão de sua fisionomia, embora repassada duma espécie de indiferença intratável por assuntos e coisas em geral, nem por isso deixava de ser extremamente solene e séria, fora de qualquer possibilidade de imitação ou descrição. 


O marujo mais moço era, pelo menos aparentemente, o inverso de seu companheiro. Sua estatura não ia além de um metro e vinte. Um par de pernas atarracadas e arqueadas suportava-lhe o corpo pesado e rechonchudo, enquanto os braços, descomunalmente curtos e grossos, de punhos incomuns, pendiam balouçantes dos lados, como as barbatanas duma tartaruga-marinha. Os olhos pequenos de cor imprecisa, brilhavam-lhe encravados fundamente nas órbitas. O nariz se afundava na massa de carne, que lhe envolvia a cara redonda, cheia, purpurina. O grosso lábio superior descansava sobre o inferior, ainda mais carnudo, com um ar de complacente satisfação pessoal, mais acentuada pelo hábito que tinha o dono de lamber seus beiços, de vez em quando. E evidente que ele olhava seu camarada alto com um sentimento meio de espanto, meio de zombaria, e, quando, às vezes, erguia a vista para encará-lo, parecia o vermelho sol poente a fitar os penhascos de Ben Nevis. 

Várias e aventurosas haviam, porém, sido as peregrinações do digno par, pelas diversas cervejarias da vizinhança, durante as primeiras horas da noite. Mas os cabedais, por mais vastos que sejam não podem durar sempre e foi de bolsos vazios que nossos amigos se aventuraram a entrar na taberna aludida. No momento preciso, pois, em que esta estória começa, Legs e seu companheiro, Hugh Tarpaulin, estão sentados, com os cotovelos apoiados na grande mesa de carvalho, em meio da sala e a cara metida entre as mãos. Olhavam, por trás duma enorme garrafa de humming-stuff a pagar, as agourentas palavras: Não se fia, que para indignação e espanto deles, estavam escritas a giz na porta de entrada. Não que o dom de decifrar caracteres escritos – dom considerado então, entre o povo, pouco menos cabalístico do que a arte de escrever – pudesse, em estrita justiça, ter sido deixado a cargo dos dois discípulos do mar; mas havia, para falar a verdade, certa contorção no formato das letras, uma indescritível guinada no conjunto, que pressagiava, na opinião dos dois marinheiros uma longa viagem de tempo ruim, e os decidia a, imediatamente na linguagem alegórica do próprio Legs, “correr às bombas, ferrar todas as velas e correr com o vento em popa”.

Tendo, conseqüentemente, consumido o que restava da cerveja e abotoado seus curtos gibões, trataram afinal de saltar para a rua. Embora Tarpaulin houvesse, por duas vezes, entrado de chaminé adentro, pensando tratar-se da porta, conseguiram por fim com êxito a escapada, e meia hora depois da meia-noite achavam-se nossos heróis prontos para outra e correndo a bom correr por uma escura viela, na direção da Escada de Santo André, encarniçadamente perseguidos pela taberneira do “Alegre Marinheiro”.

Periodicamente, durante muitos anos antes e depois da época desta dramática estória, ressoava por toda a Inglaterra, e mais especialmente na metrópole, o espantoso grito de: “Peste!” A cidade estava em grande parte despovoada, e naqueles horríveis bairros das vizinhanças do Tâmisa, onde, entre aquelas vielas e becos escuros, estreitos e imundos, O Demônio da Peste tinha, como se dizia, seu berço, a Angústia, o Terror e a Superstição passeavam, como únicos senhores, à vontade.

Por ordem do rei, estavam aqueles bairros condenados e as pessoas proibidas, sob pena de morte, de penetrar-lhes a lúgubre solidão. Contudo, nem o decreto do monarca, nem as enormes barreiras erguidas às entradas das ruas, nem a perspectiva daquela hedionda morte que, com quase absoluta certeza, se apoderaria do desgraçado a quem nenhum perigo poderia deter de ali aventurar-se, impediam que as habitações vazias e desmobiliadas fossem despojadas, pelos rapinantes noturnos, de coisas como ferro, cobre ou chumbo, que pudessem, de qualquer maneira, ser transformadas em lucro apreciável. Verificava-se, sobretudo, por ocasião da abertura anual das barreiras, no inverno, que fechaduras, ferrolhos e subterrâneos secretos não passavam de fraca proteção para aqueles ricos depósitos de vinhos e licores que, dados os riscos e incômodos da remoção, muitos dos numerosos comerciantes, com estabelecimentos na vizinhança tinham consentido em confiar, durante o período de exílio, a tão insuficiente segurança.

Mas poucos eram, entre o povo aterrorizado, os que atribuíam tais fatos à ação de mãos humanas. Os espíritos, os duendes da peste, os demônios da febre eram, para o povo, os autores das façanhas. E tamanhas estórias arrepiantes se contavam a toda hora que toda a massa de edifícios proibidos ficou, afinal, como que envolta numa mortalha de horror e os próprios ladrões, muitas vezes, se deixavam tomar de pavor que suas depredações haviam criado e abandonaram todo o vasto recinto do bairro proibido, às trevas, ao silêncio, e à morte. Foi uma daquelas terrificas barreiras já mencionadas e que indicavam estar o bairro adiante sob a condenação da Peste que deteve, de repente a disparada em que vinham, beco adentro, Legs e o digno Tarpaulin. Arrepiar caminho estava fora de cogitação e não havia tempo a perder, pois os perseguidores se achavam quase a seus calcanhares. Para marinheiros chapados era um brinquedo subir por aquela tosca armação de madeira; exasperados pela dupla excitação do licor e da corrida, pularam sem hesitar para dentro do recinto e, continuando sua carreira de ébrios, com berros e urros, em breve se perderam naquelas profundezas intrincadas e pestilentas .

Não se achassem eles tão embriagados, a ponto de haverem perdido o senso moral, o horror de sua situação lhes teria paralisado os passos vacilantes. O ar era frio e nevoento. As pedras do calçamento, arrancadas do seu leito, jaziam em absoluta desordem, em meio do capim alto e viçoso, que lhes subia em torno dos pés e tornozelos.

Casas desmoronadas obstruíam as ruas. Os odores mais fétidos e mais deletérios dominavam por toda a parte, e, graças àquela luz lívida que, mesmo à meia-noite, nunca deixa de emanar duma atmosfera pestilencial e brumosa, podiam-se perceber, jacentes nos atalhos e becos, ou apodrecendo nas casas sem janelas, as carcaças de muitos saqueadores noturnos, detidos pela mão da peste, no momento mesmo da perpetração de seu roubo.

Mas não estava no poder de imagens, sensações ou obstáculos como esses deter a corrida de homens que, naturalmente corajosos e, especialmente naquela ocasião, repletos de coragem e de humming-stuff, teriam ziguezagueado, tão eretos quanto lhes permitia seu estado, sem temor, até mesmo dentro das fauces da morte. Na frente, sempre na frente, caminhava o disforme Legs, fazendo aquele deserto solene soar e ressoar, com berros semelhantes aos terríveis urros de guerra dos índios; e para a frente, sempre para a frente rebolava o atarracado Tarpaulin, agarrado ao gibão de seu companheiro mais ativo, levando-lhe enorme vantagem nos tenazes esforços, à moda de música vocal, com seus mugidos taurinos arrancados das profundezas de seus pulmões estentóricos.

Haviam agora evidentemente alcançado o reduto da peste. A cada passo, ou a cada tropeção, o caminho que seguiam se tornava mais fedorento e mais horrível, as veredas mais estreitas e mais intrincadas. Enormes pedras e vigas que caiam de repente dos telhados desmoronados demonstravam, com sua queda soturna e pesada, a altura prodigiosa das casas circunvizinhas; e quando lhes era necessário imediato esforço para forçar passagem através de freqüentes montões de caliça, não era raro que a mão caísse sobre um esqueleto ou pousasse num cadáver ainda com carne.

De repente, ao tropeçarem os marujos, à entrada dum elevado e sinistro edifício, um berro, mais retumbante que os outros, irrompeu da garganta do excitado Legs e lá de dentro veio uma em rápida sucessão de ferozes e diabólicos guinchos, semelhantes a risadas. Sem se intimidarem com aqueles sons que, pela sua natureza, pela ocasião e pelo lugar, teriam gelado todo o sangue de corações menos irrevogavelmente incendiados, o par de bêbados embarafustou pela porta, escancarando-a e, cambaleantes, com um chorrilho de pragas, se viram em meio dum montão de coisas.

A sala em que se encontravam era uma loja de cangalheiro; mas um alçapão, a um canto do soalho, perto da entrada, dava para uma longa fileira de adegas, cujas profundezas, reveladas pelo ocasional rumor de garrafas que se partiam, estavam bem sortidas do conteúdo apropriado. No meio da sala havia uma mesa, em cujo centro se erguia uma enorme cuba, cheia, ao que parecia, de ponche. Garrafas de vários vinhos e cordiais, juntamente com jarros, pichéis e garrafões de todo formato e qualidade, estavam espalhadas profusamente pela mesa. Em torno desta via-se um grupo de seis indivíduos sentados em catafalcos. Vou tentar descrevê-los um por um.

Em frente à porta de entrada e em plano acima dos companheiros estava sentado um personagem que parecia ser o presidente da mesa. Era descarnado e alto, e Legs sentiu-se confuso ao notar nele um aspecto mais emaciado do que o seu. Tinha o rosto açafroado, mas nenhum de seus traços, exceção feita de um, era bastante característico para merecer descrição especial. Aquele traço único consistia numa fronte tão insólita e tão horrivelmente elevada que tinha a aparência de um boné ou coroa de carne acrescentada à cabeça natural. Sua boca, enrugada, encovava-se numa expressão de afabilidade horrível, e seus olhos, bem como os olhos de todos quantos se achavam em torno à mesa, tinham aquele humor vítreo da embriaguez. Esse cavalheiro trajava, da cabeça aos pés, mortalha de veludo de seda negra, ricamente bordada, que lhe envolvia, com displicência, o corpo à moda duma capa espanhola. Estava com a cabeça cheia de plumas negras mortuárias, que ele fazia ondular para lá e para cá, com um ar afetado e presunçoso e na mão direita segurava um enorme fêmur humano, com o qual parecia ter acabado de bater em algum dos presentes para que cantasse. Defronte dele, e de costas para a porta, estava uma mulher de fisionomia não menos extraordinária. Embora tão alta quanto o personagem que acabamos de descrever, não tinha direito de se queixar da mesma magreza anormal. Encontrava-se, evidentemente, no derradeiro grau de uma hidropisia e seu todo era bem semelhante ao imenso pipote de cerveja-de-outubro que se erguia, de tampa arrombada, a seu lado, a um canto do aposento. Seu rosto era excessivamente redondo, vermelho e cheio e a mesma peculiaridade, ou antes falta de peculiaridade, ligada à sua fisionomia, que já mencionei no caso do presidente, isto é, somente uma feição de seu rosto era suficientemente destacada para merecer caracterização especial. De fato, o perspicaz Tarpaulin notou logo que a mesma observação podia ser feita a respeito de um dos indivíduos ali presentes. Cada um deles parecia monopolizar alguma porção particular de fisionomia. Na dama em questão, essa parte era a boca. Começando na orelha direita, rasgava-se, em aterrorizante fenda, até a esquerda. Ela fazia, no entanto, todos os esforços para conservar a boca fechada, com ar de dignidade. Seu traje consistia num sudário, recentemente engomado e passado a ferro, chegando-lhe até o queixo, com uma gola encrespada de musselina de cambraia. À sua direita sentava-se uma mocinha chocha, a quem ela parecia amadrinhar. Essa delicada criaturinha deixava ver, pelo tremor de seus dedos descarnados, pela lívida cor de seus lábios e pela leve mancha héctica que lhe tingia a tez, aliás cor de chumbo, sintomas de tuberculose galopante. Um ar de extrema distinção, porém, dominava em toda a sua aparência. Usava, duma maneira graciosa e negligente, uma larga e bela mortalha da mais fina cambraia, indiana. Seu cabelo caía-lhe em cachos sobre o pescoço. Um leve sorriso pairava-lhe nos lábios, mas seu nariz extremamente comprido, delgado, sinuoso, flexível e cheio de borbulhas, acavalava por demais sobre o lábio inferior; e, a despeito da delicada maneira pela qual ela, de vez em quando, o movia para um lado e outro com a língua, dava-lhe à fisionomia uma expressão um tanto quanto equívoca.

Do outro lado, e à esquerda da dama hidrópica, estava sentado um velho pequeno, inchado, asmático e gotoso, cujas bochechas lhe repousavam sobre os ombros como dois imensos odres de vinho do Porto. De braços cruzados e uma perna enfaixada posta sobre a mesa, parecia achar-se com direito a alguma consideração. Evidentemente orgulhava-se bastante de cada polegada de sua aparência pessoal, mas sentia mais especial deleite em chamar a atenção para seu sobretudo de cores vistosas. Para falar a verdade, não deveria este ter custado pouco dinheiro e lhe assentava esplendidamente bem, talhado como estava em uma dessas cobertas de seda, curiosamente bordadas, pertencentes àqueles gloriosos escudos que, na Inglaterra e noutros lugares, são ordinariamente suspensos, em algum lugar patente, nas residências de aristocratas falecidos.

Junto dele, e à direita do presidente, via-se um cavalheiro, com compridas meias brancas e ceroulas de algodão. Seu corpo tremelicava de maneira ridícula, num acesso daquilo que Tarpaulin chamava “os terrores”. Seus queixos, recentemente barbeados, estavam estreitamente atados por uma faixa de musselina, e, tendo os braços amarrados nos pulsos da mesma maneira, não lhe era possível servir-se muito à vontade, dos licores que se achavam sobre a mesa, precaução necessária, na opinião de Legs, graças à expressão caracteristicamente idiota e tremulenta de seu rosto. Sem embargo, um par de prodigiosas orelhas, que sem dúvida era impossível ocultar, alteava-se na atmosfera do aposento e, de vez em quando, arrebitavam-se espasmodicamente ao rumor das rolhas que espoucavam. Defronte dele, sentava-se o sexto e último personagem, de aparência rígida que, sofrendo de paralisia, devia sentir-se, falando sério, muito mal à vontade nos seus trajes nada cômodos. Essa roupa um tanto singular, consistia em um novo e belo ataúde de mogno. Sua tampa ou capacete apertava-se sobre o crânio do sujeito e estendia-se sobre ele, à moda de um elmo, dando-lhe a todo o rosto um ar de indescritível interesse. Cavas para os braços tinham sido cortadas dos lados, mais por conveniência que por elegância; apesar disso, o traje impedia seu proprietário de se sentar direito como seus companheiros. E como se sentasse reclinado de encontro a um cavalete, formando um ângulo de quarenta e cinco graus, um par de enormes olhos esbugalhados revirava suas apavorantes escleróticas para o teto, num absoluto espanto de sua própria enormidade.

Diante de cada um dos presentes estava a metade dum crânio, usada como copo. Por cima, pendia um esqueleto humano, pendurado duma corda amarrada numa das pernas e presa a uma argola no forro. A outra perna, sem nenhuma amarra, saltava do corpo em angulo reto, fazendo flutuar e girar toda a carcaça desconjuntada e chocalhante, ao sabor de qualquer sopro de vento que penetrasse no aposento. O crânio daquela hedionda coisa continha certa quantidade de carvão em brasa, que lançava uma luz vacilante, mas viva, sobre a cena, enquanto ataúdes e outras mercadorias de casa mortuária empilhavam-se até o alto, em toda a sala e contra as janelas, impedindo assim que qualquer raio de luz se projetasse na rua.

À vista de tão extraordinária assembléia e de seus mais extraordinários adornos, nossos dois marujos não se conduziram com aquele grau de decoro que era de esperar. Legs, encostando-se à parede junto da qual se encontrava, deixou cair o queixo ainda mais baixo do que de costume e arregalou os olhos até mais não poder, quanto Hugh Tarpaulin, abaixando-se a ponto de colocar o nariz ao nível da mesa e dando palmadas nas coxas, explodiu numa desenfreada e extemporânea gargalhada, que mais parecia um rugido longo, poderoso e atroador.

Sem, no entanto, ofender-se diante de procedimento tão excessivamente grosseiro, o escanifrado presidente sorriu com toda a graça para os intrusos, fazendo-lhes um gesto cheio de dignidade com a cabeça empenachada de negro, e, levantando-se, pegou-os pelos braços e levou-os aos assentos que alguns dos outros presentes tinham colocado, enquanto isso, para que eles estivessem a cômodo. Legs nenhuma resistência ofereceu a tudo isso sentando-se no lugar indicado, ao passo que o galanteador Hugh removendo cavalete de ataúde do lugar perto da cabeceira da mesa para junto da mocinha tuberculosa, da mortalha ondulante derreou-se a seu lado, com grande júbilo, e, emborcando um crânio de vinho vermelho, esvaziou-o em honra de suas mais íntimas relações. Diante de tamanha presunção, o cavalheiro teso do ataúde mostrou-se excessivamente exasperado, e sérias conseqüências poderiam ter-se seguido não houvesse o presidente, batendo com o bastão na mesa, distraído a atenção de todos os presentes para o seguinte discurso:

- É nosso dever nosso na atual feliz ocasião.

- Pare com isso! – interrompeu Legs, com toda a seriedade. Cale essa boca, digo- lhe eu, e diga-nos que diabos são vocês todos e que estão fazendo aqui, com essas farpelas de diabos sujos e bebendo a boa pinga armazenada para o inverno pelo meu honrado camarada Will Wimble, o cangalheiro!

À vista daquela imperdoável amostra de má educação, toda a esquipática assembléia se soergueu e emitiu aqueles mesmos rápidos e sucessivos guinchos ferozes e diabólicos que já haviam chamado antes a atenção dos marinheiros. O presidente, porém, foi primeiro a retomar sua compostura e por fim, voltando-se para Legs com grande dignidade, recomeçou:

- De muito boa-vontade satisfaremos qualquer curiosidade razoável da parte de hóspedes tão ilustres, embora não convidados. Ficai, pois, sabendo que, nestes domínios, sou o monarca e governo, com indivisa autoridade, com o título de “Rei Peste I.” Esta sala, que supondes injuriosamente ser a loja do cangalheiro Will Wimble, homem que não conhecemos e cujo sobrenome plebeu jamais ressoara, até esta noite, aos nossos reais ouvidos… esta sala, repito, é a Sala do Trono de nosso palácio. Consagrada aos conselhos de nosso reino e outros destinos de natureza sagrada e superior.

A nobre dama sentada à nossa frente é a Rainha Peste, nossa Sereníssima Esposa. Os outros personagens ilustres que vedes pertencem todos à nossa família e usam as insígnias do sangue real nos respectivos títulos de: “Sua Graça o Arquiduque Peste-Ifero”, “Sua Graça o Duque Pest- Ilencial”, “Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso” e “Sua Serena Alteza a Arquiduquesa Ana-Peste”.

Quanto à vossa pergunta – continuou ele -, a respeito do que nos trás aqui reunidos em conselho, ser-nos-ia lícito responder que, concerne e concerne exclusivamente, ao nosso próprio e particular interesse e não tem importância para ninguém mais que não nós mesmos. Mas em consideração aos direitos de que, na qualidade de hóspedes e estrangeiros, possais julgar-vos merecedores, explicar-vos-emos entanto, que estamos aqui, esta noite, preparados por intensa pesquisa e acurada investigação, a examinar, analisar e determinar, indubitavelmente, o indefinível espírito, as incompreensíveis qualidades e natureza desses inestimáveis tesouros do paladar que são os vinhos, cervejas e licores desta formosa metrópole. Assim procedemos não só para melhorar nossa própria situação, mas para o bem-estar verdadeiro daquela soberana sobrenatural que reina sobre todos nós, cujos domínios não têm limites e cujo nome é “Morte”.

- Cujo nome é Davi Jones! – exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um crânio de licor e emborcando ele próprio um segundo.

- Lacaio profanador! – exclamou o presidente, voltando agora para o digno Hugh. – Miserável e execrando profanador. Dissemos que, em consideração àqueles direitos que, mesmo na tua imunda pessoa, não nos sentimos com inclinação para violar, condescendemos em responder às tuas grosseiras e desarrazoadas indagações. Contudo, tendo em vista a vossa profana intrusão no recinto de nossos conselhos, acreditamos ser de nosso dever multar-te a ti e a teu companheiro, num galão de Black Strap, que bebereis pela prosperidade de nosso reino, dum só gole e de joelhos; logo depois estareis livres para continuar vosso caminho ou permanecerdes e serdes admitidos aos privilégios de nossa mesa, se acordo com vossos respectivos gostos pessoais.

- Será coisa de absoluta impossibilidade – replicou Legs, a quem a imponência e a dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente inspirado alguns sentimentos de respeito, e que se levantara, ficando de pé junto da mesa, enquanto aquele falava.

- Será, com licença de Vossa Majestade, coisa extremamente impossível arrumar no meu porão até mesmo a quarta parte desse tal licor que vossa Majestade acaba de mencionar. Não falando das mercadorias colocadas esta manhã a bordo para servir de lastro, e não mencionando as várias cervejas e licores embarcados esta noite em vários portos, tenho, presentemente, uma carga completa de humming-tuff, entrada e devidamente paga na taberna do “Alegre Marinheiro”. De modo que há de Vossa Majestade ter a bondade de tomar a tenção como coisa realizada, pois não posso de modo algum, nem quero, engolir outro trago e muito menos um trago dessa repugnante água-de-porão que responde ao nome de Black Strap.

- Pare com isso! – interrompeu Tarpaulin, espantado não só pelo tamanho do discurso de seu companheiro como pela natureza de sua recusa. – Pare com isso, seu marinheiro de água doce! Repito, Legs, pare com esse palavreado! O meu casco está ainda leve, embora, confesse-o, esteja o seu mais pesado em cima que em baixo. Quanto à estória de sua parte da carga, em vez de provocar uma borrasca, acharei jeito de arrumá-la eu mesmo no porão, mas…

- Este modo de proceder – interferiu o presidente – não está de modo algum em acordo com os termos da multa ou sentença que é de natureza média e não pode ser alterada nem apelada. As condições que impusemos devem ser cumpridas à risca, e isto sem um instante de hesitação… sem o quê, decretamos que sejais amarrados, pescoços e calcanhares juntos, e devidamente afogados, rebeldes, naquela pipa de cerveja-de-outubro!

- Que sentença! Que sentença! Que sentença justa e direita! decreto glorioso! A condenação mais digna, mais irrepreensível, sagrada! – gritaram todos os membros da família Peste ao mesmo tempo.

O rei franziu a testa em rugas inumeráveis; o homenzinho gotoso soprava, como um par de foles; a dona da mortalha de cambraia movia o nariz para um lado para o outro; o cavalheiro de ceroulas de algodão arrebitou as orelhas; a mulher do sudário ofegava como um peixe agonizante, e o sujeito do ataúde entesou-se mais, arregalando os olhos para cima.

- Oh, uh, uh! – ria Tarpaulin, entre dentes, sem notar a excitação geral. – Uh, uh, … Uh, uh, uh… Estava eu dizendo quando aqui o Sr. Rei Peste veio meter seu bedelho, que a respeito da questão de dois ou três galões mais ou menos de Black Strap era uma bagatela para um barco sólido como eu que não está sobrecarregado; e quando se tratar de beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe) e de me pôr de joelhos diante dessa horrenda majestade aqui presente, que eu conheço tão bem como sei que sou um pecador, e que não é outro senão Tim Hurlygurly, o palhaço!… Ora essa, é muito outra coisa, e vai muito além de minha compreensão.

Não lhe permitiram que terminasse tranqüilamente seu discurso ao nome de Tim Hurlygurly, todos os presente pularam dos assentos.

- Traição! – gritou Sua Majestade o Rei Peste I.

- Traição! – disse o homenzinho gotoso.

- Traição! – esganiçou a Arquiduquesa Ana-Peste.

- Traição! – murmurou o homem dos queixos amarrados.

- Traição! – grunhiu o sujeito do ataúde.

- Traição, traição! – berrou Sua Majestade, a mulher da bocarra. E, agarrando o infeliz Tarpaulin pela traseira das calças, o qual estava justamente enchendo outro crânio de licor, ergueu-o no ar e deixou-o bem alto no ar, e deixou-o cair sem cerimônia no imenso barril aberto de sua cerveja predileta. Boiando para lá e para cá, durante alguns segundos, como uma maçã numa tigela de ponche, desapareceu afinal no turbilhão de espuma que, no já efervescente licor, haviam provocado seus esforços de safar-se.

Não se resignou, porém, o marinheiro alto com a derrota de seu camarada. Empurrando o Rei Peste para dentro do alçapão aberto, Legs deixou cair a tampa do alçapão sobre ele, com uma praga, e correu para o meio da sala. Ali, puxando para baixo o esqueleto que pendia sobre a mesa, com tamanha força e vontade que o fez que conseguiu fazer saltar os miolos do homenzinho gotoso, ao tempo que morriam os derradeiros lampejos de luz dentro da sala.

Precipitando-se, então, com toda a sua energia, contra a pipa fatal cheia de cerveja-de-outubro e de Hugh Tarpaulin, revirou-a, num instante, de lado. Dela jorrou um dilúvio de licor tão impetuoso, violento, tão irresistível, que a sala ficou inundada de parede a parede, as mesas carregadas viraram de pernas para o ar, os cavaletes rebolaram uns por cima dos outros, a tina de ponche foi lançada na chaminé da lareira… e as damas caíram com ataques histéricos. Montes de artigos fúnebres boiavam. Jarros, pichéis e garrafões confundiam-se, numa misturada enorme, e as garrafas de vime embatiam-se, desesperadamente, com cantis trançados. O homem dos tremeliques afogou-se imediatamente. O sujeito flutuava no seu caixão… e o vitorioso Legs, agarrando pela cintura pela criatura a mulher gorda do sudário, arrastou-a para a rua e em linha reta, a direção do Free and Easy, seguido, a bom pano, pelo temível Hugh Tarpaulin, que, tendo espirrado três ou quatro vezes, ofegava e bufava atrás dele, puxando a Arquiduquesa Ana-Peste.

sexta-feira, 24 de março de 2017

O Recomeço

Alguns anos no futuro...


"Papai, porque eles nos odeiam?"


"Oh querida, pode parecer que eles nos odeiam, mas na verdade, eles nos escolheram".


"Mas papai, porque eles estão fazendo isso?"


"Não sei querida, mas, infelizmente, essa é a vontade deles. Esta será a última vez que isso acontece, o mundo vai ver... Há um velho ditado que diz que é preciso destruir antes que se possa criar. É como quando você brinca com seus blocos de montar. Antes de construir algo novo, você tem desmontar o que tinha feito antes. A mesma coisa acontece com os homens e as cidades". 


"Eles não poderiam ter escolhido outro lugar?"


"Eles poderiam sim, meu bebê, muitos outros. Mas fomos os escolhidos. Não havia comida suficiente e para eles, nós consumíamos demais, por isso que há tanta maldade no mundo agora."


"Entendi, papai." 


"Já faz nove minutos desde que as sirenes tocaram e eu quero que você seja corajosa, meu anjo. Vamos ser imortais depois de hoje, isso significa que nós vamos viver para sempre. Sem mais dor, sem mais fome, sem mais lágrimas. Isso não soa tão ruim, não é?" 


"Temos que nos despedir agora, papai?"


"Não, querida, daqui a pouco nós vamos nos encontrar de novo. Eu te amo muito minha filha. Estou muito orgulhoso de você."


A família Smith está na frente de uma grande e laje de mármore, eles apertam as mãos e fecham os olhos. As lágrimas que rolam de seus rostos evaporam imediatamente assim como seus corpos, uma vez que a explosão nuclear os alcança. Tudo o que restou foi uma mensagem pintada no chão de mármore: "Nós perdoamos vocês, construam algo melhor."


fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/09/o-recomeco.html

segunda-feira, 20 de março de 2017

O Poço e o Pêndulo - Edgar Allan Poe



Estava exausto, mortalmente exausto com aquela longa agonia e, quando por fim me desamarraram e pude sentar-me, senti que perdia os sentidos. A sentença – a terrível sentença de morte – foi a última frase que chegou, claramente, aos meus ouvidos. Depois, o som das vozes dos inquisidores pareceu apagar-se naquele zumbido indefinido de sonho. O ruído despertava em minha alma a idéia de rotação, talvez devido à sua associação, em minha mente, com o ruído característico de uma roda de moinho. Mas isso durou pouco, pois, logo depois, nada mais ouvi. Não obstante, durante alguns momentos, pude ver, mas com que terrível exagero! Via os lábios dos juízes vestidos de preto. Pareciam-me brancos, mais brancos do que a folha de papel em que traço estas palavras, e grotescamente finos – finos pela intensidade de sua expressão de firmeza, pela sua inflexível resolução, pelo severo desprezo ao sofrimento humano. Via que os decretos daquilo que para mim representava o destino saíam ainda daqueles lábios. Vi-os contorcerem-se numa frase mortal; vi-os pronunciarem as sílabas de meu nome – e estremeci, pois nenhum som lhes acompanhava os movimentos. 


Vi, também, durante alguns momentos de delírio e terror, a suave quase imperceptível ondulação das negras tapeçarias que cobriam as paredes da sala, e o meu olhar caiu então sobre as sete grandes velas que estavam em cima da mesa. A princípio, tiveram para mim o aspecto de uma claridade, e pareceram-me anjos brancos e esguios que deveriam salvar-me. Mas, de repente, uma náusea mortal invadiu-me a alma, e senti que cada fibra de meu corpo estremecia como se houvesse tocado os fios de uma bateria galvânica. As formas angélicas se converteram em inexpressivos espectros com cabeças de chama, e vi que não poderia esperar delas auxílio algum. Então, como magnífica nota musical, insinuou-se em minha imaginação a idéia do doce repouso que me aguardava no túmulo. Chegou suave, furtivamente – e penso que precisei de muito tempo para apreciá-la devidamente. Mas, no instante preciso em que meu espírito começava a sentir e alimentar essa idéia, as figuras dos juízes se dissiparam, como por arte de mágica, ante os meus olhos. As grandes velas reduziram-se a nada; suas chamas se apagaram por completo e sobreveio o negror das trevas; todas as sensações pareceram desaparecer como numa queda louca da alma até o Hades. E o universo transformou-se em noite, silêncio, imobilidade.

Eu desmaiara; mas, não obstante, não posso dizer que houvesse perdido de todo a consciência. Não procurarei definir, nem descrever sequer, o que dela me restava. Nem tudo, porém, estava perdido. Em meio do mais profundo sono… não! Em meio do delírio… não! Em meio do desfalecimento. . . não! Em meio da morte… não! Nem mesmo na morte tudo está perdido. Do contrário, não haveria imortalidade para o homem. Quando despertamos do mais profundo sono, desfazemos as teias de aranha de algum sonho. E, não obstante, um segundo depois não nos lembramos de haver sonhado, por mais delicada que tenha sido a teia. Na volta a vida, depois do desmaio, há duas fases: o sentimento da existência moral ou espiritual e o da existência física. Parece provável que, se ao chegar à segunda fase tivéssemos de evocar as impressões da primeira, tornaríamos a encontrar todas as lembranças eloqüentes do abismo do outro mundo. E qual é esse abismo? Como, ao menos, poderemos distinguir suas sombras das do túmulo?

Mas, se as impressões do que chamamos primeira fase não nos acodem de novo ao chamado da vontade, acaso não nos aparecem depois de longo intervalo, sem ser solicitadas, enquanto, maravilhados, perguntamos a nós mesmos de onde provêm? Quem nunca perdeu os sentidos não descobrirá jamais estranhos palácios e rostos singularmente familiares entre as chamas ardentes; não contemplará, flutuante no ar, as melancólicas visões que muitos talvez jamais contemplem; não meditará nunca sobre o perfume de alguma flor desconhecida, nem mergulhará no mistério de alguma melodia que jamais lhe chamou antes a atenção.

Em meio de meus freqüentes e profundos esforços para recordar, em meio de minha luta tenaz para apreender algum vestígio desse estado de vácuo aparente em que minha alma mergulhara, houve breves, brevíssimos instantes em que julguei triunfar, momentos fugidios em que cheguei a reunir lembranças que, em ocasiões posteriores, meu raciocínio, lúcido, me afirmou não poderem referir-se senão a esse estado em que a consciência parece aniquilada. Essas sombras de lembranças apresentavam, indistintamente, grandes figuras que me carregavam, transportando-me, silenciosamente, para baixo… para baixo… ainda mais para baixo… até que uma vertigem horrível me oprimia, ante a idéia de que não tinha mais fim tal descida. Também me lembro de que despertavam um vago horror no fundo de meu coração, devido precisamente à tranqüilidade sobrenatural desse mesmo coração. Depois, o sentimento de uma súbita imobilidade em tudo o que me cercava, como se aqueles que me carregavam (espantosa comitiva!) ultrapassassem, em sua descida, os limites do ilimitado, e fizessem uma pausa, vencidos pelo cansaço de seu esforço. Depois disso, lembro-me de uma sensação de monotonia e de umidade. Depois, tudo é loucura – a loucura da memória que se agita entre coisas proibidas.

Súbito, voltam à minha alma o movimento e o som – o movimento tumultuoso do coração e, em meus ouvidos, o som de suas batidas. Em seguida, uma pausa, em que tudo é vazio. Depois, de novo, o som, o movimento e o tato, como uma sensação vibrante que penetra em meu ser. Logo após, a simples consciência da minha existência, sem pensamento – estado que durou muito tempo. Depois, de maneira extremamente súbita, o pensamento, e um trêmulo terror – o esforço enorme para compreender o meu verdadeiro estado. Logo após, vivo desejo de mergulhar na insensibilidade. Depois, um brusco renascer da alma e um esforço bem sucedido para mover-me. E, então, a lembrança completa do que acontecera, dos juízes, das tapeçarias negras, da sentença, da fraqueza, do desmaio. Esquecimento completo de tudo o que acontecera – e que somente mais tarde, graças aos mais vivos esforços, consegui recordar vagamente.

Até então, não abrira ainda os olhos. Sentia que me achava deitado de costas, sem que estivesse atado. Estendi a mão e ela caiu pesadamente sobre alguma coisa úmida e dura. Deixei que ela lá ficasse durante muitos minutos, enquanto me esforçava por imaginar onde é que eu estava e o que é que poderia ter acontecido comigo. Desejava, mas não me atrevia a fazer uso dos olhos. Receava o primeiro olhar sobre as coisas que me cercavam. Não que me aterrorizasse contemplar coisas terríveis, mas tinha medo de que não houvesse nada para ver. Por fim, experimentando horrível desespero em meu coração, abri rapidamente os olhos. Meus piores pensamentos foram, então, confirmados. Envolviam-me as trevas da noite eterna. Esforcei-me por respirar. A intensidade da escuridão parecia oprimir-me, asfixiar-me. O ar era intoleravelmente pesado. Continuei ainda imóvel, e esforcei-me por fazer uso da razão. Lembrei-me dos procedimentos inquisitoriais e, partindo daí, procurei deduzir qual a minha situação real.

A sentença fora proferida, e parecia-me que, desde então, transcorrera longo espaço de tempo. Não obstante, não imaginei um momento sequer que estivesse realmente morto. Tal suposição, pese o que lemos nos livros de ficção, é absolutamente incompatível com a existência real. Mas onde me encontrava e qual era o meu estado? Sabia que os condenados à morte pereciam, com freqüência, nos autos-de-fé – e um desses autos havia-se realizado na noite do dia em que eu fora julgado. Teria eu permanecido em meu calabouço, à espera do sacrifício seguinte, que não se realizaria senão dentro de muitos meses? Vi, imediatamente, que isso não poderia ser. As vítimas eram exigidas sem cessar. Além disso, meu calabouço, bem como as celas de todos os condenados, em Toledo, tinha piso de pedra e a luz não era inteiramente excluída.

De repente, uma idéia terrível acelerou violentamente o sangue em meu coração e, durante breve espaço, mergulhei de novo na insensibilidade. Ao recobrar os sentidos, pus-me logo de pé, a tremer convulsivamente. Alucinado, estendi os braços para o alto e em torno de mim, em todas as direções. Não senti nada. Não obstante, receava dar um passo, com medo de ver os meus movimentos impedidos pelos muros de um túmulo. O suor brotava-me de todos os poros e grossas gotas frias me salpicavam a testa. A angústia da incerteza tornou-se, por fim, insuportável e avancei com cautela, os braços estendidos, os olhos a saltar-me das órbitas, na esperança de descobrir algum tênue raio de luz. Dei muitos passos, mas, não obstante, tudo era treva e vácuo. Sentia a respiração mais livre. Parecia-me evidente que o meu destino não era, afinal de contas, o mais espantoso de todos.

Continuei a avançar cautelosamente e, enquanto isso, me vieram à memória mil vagos rumores dos horrores de Toledo. Sobre calabouços, contavam-se coisas estranhas – fábulas, como eu sempre as considerara; coisas, contudo, estranhas, e demasiado horríveis para que a gente as narrasse a não ser num sussurro. Acaso fora eu ali deixado para morrer de fome naquele subterrâneo mundo de trevas, ou

quem sabe um destino ainda mais terrível me aguardava? Conhecia demasiado bem o caráter de meus juízes para duvidar de que o resultado de tudo aquilo seria a morte, e uma morte mais amarga do que a habitual. Como seria ela e a hora de sua execução eram os únicos pensamentos que me ocupavam o espírito, causando-me angústia.

Minhas mãos estendidas encontraram, afinal, um obstáculo sólido. Era uma parede que parecia de pedra, muito lisa, úmida e fria. Segui junto a ela, caminhando com a cautelosa desconfiança que certas narrações antigas me haviam inspirado. Porém, essa operação não me proporcionava meio algum de averiguar as dimensões de meu calabouço; podia dar a volta e tornar ao ponto de partida sem perceber exatamente o lugar em que me encontrava, pois a parede me parecia perfeitamente uniforme. Por isso, procurei um canivete que tinha num dos bolsos quando fui levado ao tribunal, mas havia desaparecido. Minhas roupas tinham sido substituídas por uma vestimenta de sarja grosseira. A fim de identificar o ponto de partida, pensara em enfiar a lâmina em alguma minúscula fenda da parede. A dificuldade, apesar de tudo, não era insuperável, embora, em meio à desordem de meus pensamentos, me parecesse, a princípio, uma coisa insuperável. Rasguei uma tira da barra de minha roupa e coloquei-a ao comprido no chão. formando um ângulo reto com a parede. Percorrendo as palpadelas o caminho em torno de meu calabouço, ao terminar o circuito teria de encontrar o pedaço de fazenda. Foi, pelo menos, o que pensei; mas não levara em conta as dimensões do calabouço, nem a minha fraqueza. O chão era úmido e escorregadio. Cambaleante, dei alguns passos, quando, de repente, tropecei e caí. Meu grande cansaço fez com que permanecesse caído e, naquela posição, o sono não tardou em apoderar-se de mim.

Ao acordar e estender o braço, encontrei ao meu lado um pedaço de pão e um púcaro com água. Estava demasiado exausto para pensar em tais circunstâncias, e bebi e comi avidamente. Pouco depois, reiniciei minha viagem em torno do calabouço e, com muito esforço, consegui chegar ao pedaço de sarja. Até o momento em que caí, já havia contado cinqüenta e dois passos e, ao recomeçar a andar até chegar ao pedaço de pano, mais quarenta e oito. Portanto, havia ao todo cem passos e, supondo que dois deles fossem uma jarda, calculei em cerca de cinqüenta jardas a circunferência de meu calabouço. No entanto, deparara com numerosos ângulos na parede, e isso me impedia de conjeturar qual a forma da caverna, pois não havia dúvida alguma de que se tratava de uma caverna.

Tais pesquisas não tinham objetivo algum e, certamente, eu não alimentava nenhuma esperança; mas uma vaga curiosidade me Ievava a continuá-las. Deixando a parede, resolvi atravessar a área de minha prisão. A princípio, procedi com extrema cautela, pois o chão, embora aparentemente revestido de material sólido, era traiçoeiro, devido ao limo. Por fim, ganhei coragem e não hesitei em pisar com firmeza, procurando seguir cm linha tão reta quanto possível. Avancei, dessa maneira, uns dez ou doze passos, quando o que restava da barra de minhas vestes se emaranhou em minhas pernas. Pisei num pedaço da fazenda e caí violentamente de bruços.

Na confusão causada pela minha queda, não reparei imediatamente numa circunstância um tanto surpreendente, a qual, no entanto, decorridos alguns instantes, enquanto me encontrava ainda estirado, me chamou a atenção. Era que o meu queixo estava apoiado sobre o chão da prisão, mas os meus lábios e a parte superior de minha cabeça, embora me parecessem colocados numa posição menos elevada do que o queixo, não tocavam em nada. Por outro lado, minha testa parecia banhada por um vapor pegajoso, e um cheiro característico de cogumelos em decomposição me chegou às narinas. Estendi o braço para a frente e tive um estremecimento, ao verificar que caíra bem junto às bordas de um poço circular cuja circunferência, naturalmente, não me era possível verificar no momento. Apalpando os tijolos, pouco abaixo da boca do poço, consegui deslocar um pequeno fragmento e deixei-o cair no abismo. Durante alguns segundos, fiquei atento aos seus ruídos, enquanto, na queda, batia de encontro às paredes do poço; por fim, ouvi um mergulho surdo na água, seguido de ecos fortes. No mesmo momento, ouvi um som que se assemelhava a um abrir e fechar de porta. acima de minha cabeça, enquanto um débil raio de luz irrompeu subitamente através da escuridão e se extinguiu de pronto.

Percebi claramente a armadilha que me estava preparada, e congratulei-me comigo mesmo pelo oportuno acidente que me fizera escapar de tal destino. Outro passo antes de minha queda, e o mundo jamais me veria de novo. E a morte de que escapara por pouco era daquelas que eu sempre considerara como fabulosas e frívolas nas narrações que diziam respeito à Inquisição. Para as vítimas de sua tirania, havia a escolha entre a morte com as suas angústias físicas imediatas e a morte com os seus espantosos horrores morais. Eu estava destinado a esta última. Devido aos longos sofrimentos, meus nervos estavam à flor da pele, a ponto de tremer ao som de minha própria voz, de modo que era, sob todos os aspectos, uma vítima adequada para a espécie de tortura que me aguardava.

Tremendo dos pés à cabeça, voltei, às apalpadelas, até a parede, resolvido antes a ali perecer do que a arrostar os terrores dos poços, que a minha imaginação agora pintava. em vários lugares do calabouço. Em outras condições de espírito, poderia ter tido a coragem de acabar de vez com a minha miséria, mergulhando num daqueles poços; mas eu era, então, o maior dos covardes. Tampouco podia esquecer o que lera a respeito daqueles poços: que a súbita extinção da vida não fazia parte dos planos de meus algozes.

A agitação em que se debatia o meu espírito fez-me permanecer acordado durante longas horas; contudo, acabei por adormecer de novo. Ao acordar, encontrei ao meu lado, como antes, um pão e um púcaro com água. Consumia-me uma sede abrasadora, e esvaziei o recipiente de um gole só. A água devia conter alguma droga, pois, mal acabara de beber, tornei-me irresistivelmente sonolento. Invadiu-me profundo sono – um sono como o da morte. Quanto tempo aquilo durou, certamente, não posso dizer; mas, quando tornei a abrir os olhos, os objetos em torno eram visíveis. Um forte clarão cor de enxofre, cuja origem não pude a princípio determinar, permitia-me ver a extensão e o aspecto da prisão.

Quanto ao seu tamanho, enganara-me completamente. A extensão das paredes, em toda a sua. volta, não passava. de vinte e cinco jardas. Durante alguns minutos, tal fato me causou um mundo de preocupações inúteis. Inúteis, de fato, pois o que poderia ser menos importante, nas circunstâncias em que me encontrava, do que as simples dimensões de minha cela? Mas minha alma se interessava vivamente por coisas insignificantes, e eu me empenhava em explicar a mim mesmo o erro cometido em meus cálculos. Por fim, a verdade fez-se-me subitamente clara. Em minha primeira tentativa de exploração, eu contara cinqüenta e dois passos até o momento em que caí; devia estar, então, a um ou dois passos do pedaço de sarja; na verdade, havia quase completado toda a volta do calabouço. Nessa altura, adormeci e, ao despertar, devo ter voltado sobre meus próprios passos – supondo, assim, que o circuito do calabouço era quase o dobro do que realmente era. A confusão de espírito em que me encontrava impediu-me de notar que começara a volta seguindo a parede pela esquerda, e que a terminara seguindo-a para a direita.

Enganara-me, também, quanto ao formato da cela. Ao seguir o meu caminho, deparara com muitos ângulos, o que me deu idéia de grande irregularidade, tão poderoso é o efeito da escuridão total sobre alguém que desperta do sono ou de um estado de torpor! Os ângulos não passavam de umas poucas reentrâncias, ou nichos, situadas em intervalos iguais. A forma geral da prisão era retangular. O que me parecera alvenaria, parecia-me, agora, ferro, ou algum outro metal, disposto em enormes pranchas, cujas suturas ou juntas produziam as depressões. Toda a superfície daquela construção metálica era revestida grosseiramente de vários emblemas horrorosos e repulsivos nascidos das superstições sepulcrais dos monges. Figuras de demônios de aspectos ameaçadores, com formas de esqueleto, bem como outras imagens ainda mais terríveis, enchiam e desfiguravam as paredes. Observei que os contornos de tais monstruosidades eram bastante nítidos, mas que as cores pareciam desbotadas e apagadas, como por efeito da umidade. Notei, então, que o piso era de pedra. Ao centro, abria-se o poço circular de cujas fauces eu escapara – mas era o único existente no calabouço.

Vi tudo isso confusamente e com muito esforço, pois minha condição física mudara bastante durante o sono. Estava agora estendido de costas numa espécie de andaime de madeira muito baixo, ao qual me achava fortemente atado por uma longa tira de couro. Esta dava muitas voltas em torno de meus membros e de meu corpo, deixando apenas livre a minha cabeça e o meu braço esquerdo, de modo a permitir que eu, com muito esforço, me servisse do aumento que se achava sobre um prato de barro, colocado no chão. Vi, horrorizado, que o púcaro havia sido retirado, pois uma sede intolerável me consumia. Pareceu-me que a intenção de meus verdugos era exasperar essa sede, já que o alimento que o prato continha consistia de carne muita salgada.

Levantei os olhos e examinei o teto de minha prisão. Tinha de nove a doze metros de altura e o material de sua construção assemelhava-se ao das paredes laterais. Chamou-me a atenção uma de suas figuras, bastante singular. Era a figura do Tempo, tal como é comumente representado, salvo que, em lugar da foice, segurava algo que me pareceu ser, ao primeiro olhar, um imenso pêndulo, como esses que vemos nos relógios antigos. Havia alguma coisa, porém, na aparência desse objeto, que me fez olhá-lo com mais atenção.

Enquanto a observava diretamente, olhando para cima, pois se achava colocada exatamente sobre minha cabeça, tive a impressão de que o pêndulo se movia. Um instante depois, vi que minha impressão se confirmava. Seu oscilar era curto e, por conseguinte, lento. Observei-o, durante alguns minutos, com certo receio, mas, principalmente, com espanto. Cansado, por fim, de observar o seu monótono movimento, voltei o olhar para outros objetos existentes na cela.

Um ligeiro ruído atraiu-me a atenção e, olhando para o chão, vi que enormes ratos o atravessavam. Tinham saído do poço, que ficava a direita. bem diante de meus olhos. Enquanto os olhava, saíam do poço em grande número, apressadamente, com olhos vorazes, atraídos pelo cheiro da carne. Foi preciso muito esforço e atenção de minha parte para afugentá-los.

Talvez houvesse transcorrido meia hora, ou mesmo uma hora – pois não me era possível perceber bem a passagem do tempo -, quando levantei de novo os olhos para o teto. O que então vi me deixou atônito, perplexo. O oscilar do pêndulo havia aumentado muito, chegando quase a uma jarda. Como consequência natural, sua velocidade era também muito maior. Mas o que me perturbou, principal-mente, foi a ideia de que havia, imperceptivelmente, descido. Observei, então – tomado de um horror que bem se pode imaginar -, que a sua extremidade inferior era formada de uma lua crescente feita de aço brilhante, de cerca de um pé de comprimento de ponta a ponta. As pontas estavam voltadas para cima e o fio inferior era, evidentemente, afiado como uma navalha. Também como uma navalha, parecia pesada e maciça, alargando-se, desde o fio, numa estrutura larga e sólida. Presa a cela havia um grosso cano de cobre, e tudo isso assobiava, ao mover-se no ar.

Já não me era possível alimentar qualquer dúvida quanto à sorte que me reservara o terrível engenho monacal de torturas. Os agentes da Inquisição tinham conhecimento de que eu descobrira o poço – o poço cujos horrores haviam sido destinados a um herege tão temerário quanto eu -, o poço, imagem do inferno, considerado como a Última Tule de todos os seus castigos. Um simples acaso me impedira de cair no poço, e eu sabia que a surpresa, ou uma armadilha que levasse ao suplício constituíam uma parte importante de tudo o que havia de grotesco naqueles calabouços de morte. Ao que parecia, tendo fracassado a minha queda no poço, não fazia parte do plano demoníaco o meu lançamento no abismo e, assim, não havendo outra alternativa, aguardava-me uma forma mais suave de destruição. Mais suave! Em minha angústia, esbocei um sorriso ao pensar no emprego dessas palavras.

Para que falar das longas, longas horas de horror mais do que mortal, durante as quais contei as rápidas oscilações do aço? Polegada a polegada, linha a linha, descia aos poucos, de um modo só perceptível a intervalos que para mim pareciam séculos. E cada vez descia mais, descia mais!…

Passaram-se dias, talvez muitos dias, antes que chegasse a oscilar tão perto de mim a ponto de me ser possível sentir o ar acre que deslocava. Penetrava-me as narinas o cheiro do aço afiado. Rezei – cansando o céu com as minhas preces – para que a sua descida fosse mais rápida. Tomado de frenética loucura, esforcei-me para erguer o corpo e ir ao encontro daquela espantosa e oscilante cimitarra. Depois, de repente, apoderou-se de mim uma grande calma e permaneci sorrindo diante daquela morte cintilante, como uma criança diante de um brinquedo raro.

Seguiu-se outro intervalo de completa insensibilidade -um intervalo muito curto, pois, ao voltar de novo à vida, não me pareceu que o pêndulo houvesse descido de maneira perceptível. Mas é possível que haja decorrido muito tempo; sabia que existiam seres infernais que tomavam nota de meus desfalecimentos e podiam deter, à vontade, o movimento do pêndulo. Ao voltar a mim, senti um mal-estar é uma fraqueza indescritíveis, como se estivesse a morrer de inanição. Mesmo entre todas as angústias por que estava passando, a natureza humana ansiava por alimento. Com penoso esforço, estendi o braço esquerdo tanto quanto me permitiam as ataduras e apanhei um resto de comida que conseguira evitar que os ratos comessem. Ao levar um bocado à boca, passou-me pelo espírito um vago pensamento de alegria… de esperança. Não obstante, .que é que tinha com a ver com a esperança? Era, como digo, um pensamento vago – desses que ocorrem a todos com freqüência, mas que não se completam. Mas senti que era de alegria, de esperança. Como senti, também, que se extinguira antes de formar-se. Esforcei-me em vão por completá-lo… por reconquistá-lo. Meus longos sofrimentos haviam quase aniquilado todas as Faculdades de meu espírito. Eu era um imbecil, um idiota.

A oscilação do pêndulo se processava num plano que tornava um ângulo reto com o meu corpo. Vi que a lâmina fora colocada de modo a atravessar-me a região do coração. Rasgaria a minha roupa, voltaria e repetiria a operação… de novo, de novo. Apesar da grande extensão do espaço percorrido – uns trinta pés, mais ou menos – e da sibilante energia de sua oscilação, suficiente para partir ao meio aquelas próprias paredes de ferro, tudo o que podia fazer, durante vários minutos, seria apenas rasgar as minhas roupas. E, ao pensar nisso, detive-me. Não ousava ir além de tal reflexão. Insisti sobre ela com toda atenção, como se com essa insistência pudesse parar ali a descida da lâmina. Comecei a pensar no som que produziria ao passar pelas minhas roupas, bem como na estranha e arrepiante sensação que o rasgar de uma fazenda produz sobre os nervos. Pensei em todas essas coisas fazendo os dentes rangerem, de tão contraídos.

Descia… cada vez descia mais a lâmina. Sentia um prazer frenético ao comparar sua velocidade de cima a baixo com a sua velocidade lateral. Para a direita… para a esquerda… num amplo oscilar… com o grito agudo de uma alma penada; para o meu coração, com o passo furtivo de um tigre! Eu ora ria, ora uivava, quando esta ou aquela idéia se tornava predominante.

Sempre para baixo… certa e inevitavelmente! Movia-se, agora, a três polegadas do meu peito! Eu lutava violentamente, furiosamente. para livrar o braço esquerdo. Este estava livre apenas desde o cotovelo até a mão. Podia mover a mão, com grande esforço, apenas desde o prato, que haviam colocado ao meu lado, até a boca. Nada mais. Se houvesse podido romper as ligaduras acima do cotovelo, teria apanhado o pêndulo e tentado detê-lo. Mas isso seria o mesmo que tentar deter uma avalancha!

Sempre mais baixo, incessantemente, inevitavelmente mais baixo! Arquejava e me debatia a cada vibração. Encolhia-me convulsivamente a cada oscilação. Meus olhos seguiam as subidas e descidas da lâmina com a ansiedade do mais completo desespero; fechavam-se espasmodicamente a cada descida, como se a morte houvesse sido um alívio… oh, que alívio indizível! Não obstante, todos os meus nervos tremiam. à idéia de que bastaria que a máquina descesse um pouco mais para que aquele machado afiado e reluzente se precipitasse sobre o meu peito. Era a esperança que fazia com que meus nervos estremecessem, com que todo o meu corpo se encolhesse. Era a esperança – a esperança que triunfa mesmo sobre o suplício -, a que sussurrava aos ouvidos dos condenados à morte, mesmo nos calabouços da Inquisição.

Vi que mais umas dez ou doze oscilações poriam o aço em contato imediato com as minhas roupas e, com essa observação, invadiu-me o espírito toda a calma condensada e viva do desespero. Pela primeira vez durante muitas horas – ou, talvez dias – consegui pensar. Ocorreu-me, então, que a tira ou correia que me envolvia o corpo era inteiriça. Não estava amarrada por meio de cordas isoladas.

O primeiro golpe da lâmina em forma. de meia lua sobre qualquer lugar da correia a desataria, de modo a permitir que minha mão a desenrolasse de meu corpo. Mas como era terrível, nesse caso, a sua proximidade. O resultado do mais leve movimento, de minha parte, seria mortal! Por outro lado, acaso os sequazes do verdugo não teriam previsto e impedido tal possibilidade? E seria provável que a correia que me atava atravessasse o meu peito justamente no lugar em. que o pêndulo passaria? Temendo ver frustrada essa minha fraca e, ao que parecia, última esperança, levantei a cabeça o bastante par ver bem o meu peito. A correia, envolvia-me os membros e o corpo fortemente em todas as direções, menos no lugar em que deveria passar a lâmina assassina.

Mal deixei cair a cabeça em sua posição anterior, quando senti brilhar em meu espírito algo que só poderia descrever aproximadamente, dizendo que era como que a metade não formada da idéia de liberdade a que aludi anteriormente, e da qual apenas uma parte flutuou vaga-mente em meu espírito quando levei o alimento aos meus lábios febris. Agora, todo o pensamento estava ali presente – débil, quase insensato, quase indefinido -, mas, de qualquer maneira, completo. Procurei imediatamente, com toda a energia nervosa do desespero, pô-lo em execução.

Havia várias horas, um número enorme de ratos se agitava junto do catre em que me achava estendido. Eram temerários, ousados, vorazes; fitavam sobre mim os olhos vermelhos, como se esperassem apenas minha imobilidade para fazer-me sua presa. “A que espécie de alimento”, pensei, “estão eles habituados no poço?” Haviam devorado, apesar de todos os meus esforços para o impedir, quase tudo o alimento que se encontrava no prato, salvo uma pequena parte. Minha mão se acostumara a um movimento oscilatório sobre o prato e, no fim, a uniformidade inconsciente de tal movimento deixou de produzir efeito. Em sua veracidade, cravavam freqüentemente em meus dedos os dentes agudos. Com o resto da carne oleosa e picante que ainda sobrava. esfreguei fortemente, até o ponto em que podia alcançá-la, a correia com que me haviam atado. Depois, erguendo a mão do chão, permaneci imóvel, quase sem respirar.

A princípio, os vorazes animais ficaram surpresos c aterrorizados com a mudança verificada – com a cessação de qualquer movimento. Mas isso apenas durante um momento. Não fora em vão que eu contara com a sua voracidade. Vendo que eu permanecia imóvel, dois ou três dos mais ousados soltaram sobre o catre e puseram-se a cheirar a correia. Disse-ia que isso foi o sinal para a investida geral. Vindos da parede, arremeteram em novos bandos. Agarraram-se ao estrado, galgaram-no e pularam. as centenas sobre o meu corpo. O movimento rítmico do pêndulo não os perturbava de maneira alguma. Evitando seus golpes, atiraram-se à correia besuntada. Apertavam-se, amontoavam-se sobre mim. Contorciam-se sobre meu pescoço; seus focinhos, frios. procuravam meus lábios. Sentia-me quase sufocado sob o seu peso. Um asco espantoso, para o qual não existe nome, enchia-me o peito e gelava-me, com pegajosa umidade, o coração. Mais um minuto, e percebia que a operação estaria terminada. Sentia claramente que a correia afrouxava. Sabia que, em mais de um lugar, já devia estar completamente partida. Com uma determinação sobre-humana continuei imóvel.

Não errei em meus cálculos; todos esses sofrimentos não foram em vão. Senti, afinal, que estava livre. A correia pendia, em pedaços, de meu corpo. Mas o movimento do pêndulo já se realizava sobre o meu peito. Tanto a sarja da minha roupa, como a camisa que vestia já haviam sido cortadas. O pêndulo oscilou ainda por duas vezes, e uma dor aguda me penetrou todos os nervos. Mas chegara o momento da salvação. A um gesto de minha mão, meus libertadores fugiram tumultuosamente. Com um movimento decidido, mas cauteloso, deslizei encolhido, lentamente, para o lado, livrando-me das correias e da lâmina da cimitarra. Pelo menos naquele momento, estava livre.

Livre! E nas garras da Inquisição! Mal havia escapado daquele meu leito de horror e dado uns passos pelo piso de pedra da prisão, quando cessou o movimento da má-quina infernal e eu a vi subir, como que atraída por alguma força invisível, para o teto. Aquela foi uma lição que guardei desesperadamente no coração. Não havia dúvida de que os meus menores gestos eram observados. Livre! Escapara por pouco à morte numa determinada forma de agonia, apenas para ser entregue a uma outra, pior do que a morte. Com este pensamento, volvi os olhos, nervosamente, para as paredes de ferro que me cercavam. Algo estranho – uma mudança que, a princípio, não pude apreciar claramente – havia ocorrido, evidentemente, em minha cela. Durante muitos minutos de trêmula abstração, perdi-me em conjeturas vãs e incoerentes. Pela primeira vez percebi a origem da luz sulfurosa que alumiava a cela. Procedia de uma fenda, de cerca de meia polegada de largura, que se estendia em torno do calabouço, junto a base das paredes, que pareciam, assim, e, na verdade estavam, completamente separadas do solo. Procurei, inutilmente, olhar através dessa abertura.

Ao levantar-me, depois dessa tentativa, o mistério da modificação verificada tornou-se-me, subitamente, claro. Já observara que, embora os contornos dos desenhos das paredes fossem bastante nítidos, suas cores, não obstante, pareciam apagadas e indefinidas. Essas cores, agora, haviam adquirido, e estavam ainda adquirindo, um brilho intenso e surpreendente, que dava às imagens fantásticas e diabólicas um aspecto que teria arrepiado nervos mais firmes do que os meus. Olhos demoníacos, de uma vivacidade sinistra e feroz, cravavam-se em mim de todos os lados, de lugares onde antes nenhum deles era visível, com um brilho ameaçador que eu, em vão, procurei considerar como irreal.

Irreal! Bastava-me respirar para que me chegasse às narinas o vapor de ferros em brasa! Um cheiro sufocante invadia a prisão! Um brilho cada vez mais profundo se fixava nos olhos cravados em minha agonia! Um vermelho mais vivo estendia-se sobre aquelas pinturas horrorosas e sangrentas. Eu arquejava. Respirava com dificuldade. Não poderia haver dúvida quanto à intenção de meus verdugos, os mais implacáveis, os mais demoníacos de todos os homens! Afastei-me do metal incandescente,colocando-me ao centro da cela. Ante a perspectiva da morte pelo fogo,que me aguardava, a idéia da frescura do poço chegou à minha alma como um bálsamo. Precipitei-me para as suas bordas mortais. Lancei o olhar para o fundo. O resplendor da abóbada iluminava as suas cavidades mais profundas. Não obstante, durante um minuto de desvario, meu espírito se recusou a compreender o significado daquilo que eu via. Por fim, aquilo penetrou, à força, em minha alma, gravando-se a fogo em minha trêmula razão. Oh, indescritível! Oh, horror dos horrores! Com um grito, afastei-me do poço e afundei o rosto nas mãos, a soluçar amargamente.

O calor aumentava rapidamente e, mais uma vez, olhei para cima, sentindo um calafrio. Operara-se uma grande mudança na cela – e, dessa vez, a mudança era, evidentemente, de forma. Como acontecera antes, procurei inutilmente apreciar ou compreender o que ocorria. Mas não me deixaram muito tempo em dúvida. A vingança da Inquisição se exacerbara por eu a haver frustrado por duas vezes – e não mais permitiria que zombasse dela! A cela, antes, era quadrada. Notava, agora, que dois de seus ângulos de ferro eram agudos, sendo os dois outros, por conseguinte, obtusos. Com um ruído surdo, gemente, aumentava rapidamente o terrível contraste. Num instante, a cela adquirira a forma de um losango. Mas a modificação não parou aí – nem eu esperava ou desejava que parasse. Poderia haver apertado as paredes incandescentes de encontro ao peito, como se fossem uma vestimenta de eterna paz. “A morte”, disse de mim para comigo. “Qualquer morte, menos a do poço!” Insensato! Como não pude compreender que era para o poço que o ferro em brasa me conduzia? Resistiria eu ao seu calor? E, mesmo que resistisse, suportaria sua pressão? E cada vez o losango se aproximava mais, com uma rapidez que não me deixava tempo para pensar. Seu centro e, naturalmente, a sua parte mais larga chegaram até bem junto do abismo aberto. Recuei, mas as paredes, que avançavam, me empurravam, irresistivelmente, para a frente. 

Por fim, já não existia, para o meu corpo chamuscado e contorcido, senão um exíguo lugar para firmar os pés, no solo da prisão. Deixei de lutar, mas a angústia de minha alma se extravasou em forte e prolongado grito de desespero. Senti que vacilava à boca do poço, e desviei os olhos… Mas ouvi, então, um ruído confuso de vozes humanas! O som vibrante de muitas trombetas! E um rugido poderoso, como de mil trovões, atroou os ares! As paredes de fogo recuaram precipitadamente! Um braço estendido agarrou o meu, quando eu, já quase desfalecido, caía no abismo. Era o braço do General Lassalle. O exército francês entrara em Toledo. A Inquisição estava nas mãos de seus inimigos.

fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/09/o-poco-e-o-pendulo-edgar-allan-poe.html