domingo, 19 de fevereiro de 2017

Asfixia

Começou aos poucos, quase sem ser notado. As crianças foram as primeiras a sentir os efeitos, parando no meio das brincadeiras de pega-pega, esquecendo o futebol pela metade, preferindo montar quebra-cabeças à correria. Depois o boato tomou as conversas em bares, as janelas leva-e-traz das faladeiras, os programas de entrevistas, até virar notícia oficial, grave em seu chamado de cadeia nacional, transmitida a cada povo do planeta por seu próprio governante.

Não se sabia a origem do fenômeno. Nos botecos, diziam que a Terra atravessava uma região do espaço ocupada por elementos de anti-matéria que sugavam a atmosfera. As tevês culpavam os raios solares, a camada de ozônio, o El Niño. Saltando de janela em janela, entre fofocas e ladainhas, um versículo do Apocalipse ecoava: “e o sétimo anjo derramou sua taça pelos ares”. Não havia consenso, mas o fato é que a Terra, como um balão cheio de minúsculos furos, vazava gases para o cosmos.

O mundo estava perdendo ar.

Há menos de um mês, João se divertia com as piadas de narigudos fungando porções extras de oxigênio, ou dava opiniões em rodas animadas sobre qual era a quantidade mínima do gás precioso para que o homem pudesse sobreviver fazendo sexo todo dia. Havia sim as piadas, mas João reconhecia, modulado nos timbres das vozes, escondido permeando risos, o inconfundível tom do medo.

A cada dia o ar se tornava mais rarefeito, e não se descobria a causa.

Com o corpo afundado numa cadeira na varanda de seu chalé à beira-mar, comprado com os anos de salário como mergulhador, João refletia: havia trabalhado em plataformas de petróleo, consertando tubos e juntas a grandes profundidades. Aposentara-se imaginando uma velhice tranquila, apesar de solitária, já que as longas estadas em alto-mar não conciliavam com uma esposa fiel. Revivia pelas imagens em sua memória as centenas de mergulhos realizados na juventude. Relembrava os rostos que vira atrás das máscaras quando, mal calculado, o oxigênio nos cilindros subitamente chegava ao fim ainda nas profundezas. Vira olhos arregalados, primeiro de espanto, depois de terror. Vira as mãos cegas, desesperadas, procurando ar onde não havia, tentando agarrar o companheiro e arrancar de sua boca o regulador, para então se cravarem na própria garganta e aceitarem o destino. Vira-os flutuarem sem vida, asfixiados. Ele mesmo já estivera em situação semelhante, os pulmões colados, a cabeça explodindo, o coração desorientado. Só se salvara por estar mais perto da superfície, onde outro mergulhador pôde compartilhar seu gás; lá embaixo a reserva seria insuficiente, e tentar salvar um amigo seria condenar dois à morte.

João notou que as crianças haviam desaparecido e, com elas, as brincadeiras. Ninguém se apressava mais; não havia fôlego. A rua, antes alegre e barulhenta, agora estava deserta. Não era apenas a falta da gritaria da molecada que deixava a rua quieta. Cachorros já não latiam nem corriam atrás de gatos, estes também desaparecidos. Aves não voavam. O vento, como se precisasse de oxigênio para soprar, tampouco zunia. Os carros e tudo que pudesse poluir a atmosfera vaporosa foram proibidos mundialmente, e o descumprimento desses e outros decretos, sob aplicação marcial, eram punidos com execução sumária. João estava com medo. Não gostava daquele silêncio; fazia-o se lembrar da mudez dos abismos oceânicos.

Levantou-se lentamente, à maneira dos anciãos, e foi à cozinha. Preparou um copo de leite frio e bolachas. Há dois dias o governo também proibira o fogo. Qualquer atividade que se servia da combustão estava suspensa. Os alimentos eram consumidos crus. João não via problemas nisso; preocupava-o mais o momento em que, ou por falta de energia nas máquinas ou pela insuficiência da energia humana, a comida começasse a escassear.

        Voltou à varanda, apoiando-se nas paredes, fatigado e zonzo. Impossibilitado de manter-se em pé, jogou-se na cadeira e ligou o rádio, observando o peito subir e descer apenas levemente, como se respirasse pela metade. As transmissões eram raras. Somente os informes do governo cumpriam com a pontualidade, impondo novas sanções ou trazendo notícias da asfixia global. João tinha esperanças de ouvir que o fenômeno era passageiro, que fora descoberta a causa do flagelo, o motivo de a Terra estar se esvaziando de oxigênio. Mas nada; somente notas sombrias: mortes, suicídios, mais um mercado saqueado, famílias presas em grandes edifícios sem ter para onde ir, um pai desesperado por alimentar os filhos, errante após o toque de recolher, fuzilado pela Guarda Nacional. Ao menos ali, no interior, tinham um pouco de comida para dividir; mas o ar – o precioso ar – faltava a todos.

        João foi dormir mais cedo. Sonhou que nadava no fundo do mar, sem equipamentos, mas respirava normalmente e se movia ligeiro como os golfinhos. Apesar da escuridão, podia ver os peixes, os corais, abismos e... Luzes! Não as podia identificar, apenas que se aproximavam. Luzes. Aproximando-se. O medo espetou-o como farpa sob as unhas: aquelas luzes eram seus companheiros mergulhadores, mortos e perdidos na imensidão oceânica, as cavidades oculares brilhando como faróis. Cercaram-no e o agarraram pelo pescoço, as mãos mortas se fechando e o estrangulando. João sentiu os olhos arregalarem como um afogado e o ar sumiu de seus pulmões. Acordou com o susto, no breu do quarto, arfando, ainda sem fôlego. Custou a perceber que o sonho se fora, pois também se fora o ar, e ali em sua cama parecia que nadava em apnéia.

Levantou-se para um copo de água. Da janela da cozinha, ouviu alguém chorar. Alegrou-se com aquele som. Mesmo sendo um lamento, era produzido por alguém! Não estava só, afinal! Vinha da casa ao lado. O choro era fraco, de criança. Ouviu gritos de uma mulher; provavelmente a mãe. Pedia socorro, parava, arqueava, pedia de novo. Ninguém respondia.

João vestiu uma camisa, cambaleou pelo quintal e bateu à porta. Lá dentro a mãe se desesperava em ver a criança no berço, rosto azulado, tomada por convulsões. A pobre criatura nascera asmática e o ar lhe fazia mais falta. O pai implorava por ajuda.

O ex-mergulhador possuía um cilindro de oxigênio em casa. Pegou-o e o levou para a criança. Ensinou o uso e, quando disse que ia embora, viu nos olhos da mãe a mesma agonia dos asfixiados; aquela mulher seria capaz de matar pelo cilindro. Mas João não pensava em levar equipamento de volta. Apenas aconselhou parcimônia, pois não havia outros iguais àquele. Voltou se arrastando, seguido por pensamentos desoladores. Em breve, todos estariam da cor do bebê, afogados em plena terra firme.

Os dias amanheciam cada vez mais abafados. Os poucos que se aventuravam na rua não mais andavam, arrastavam-se de quatro. João, de sua cadeira, ria da ironia da vida. A raça humana, que se destacara na evolução por andar sobre duas pernas, inclinava-se e devolvia as mãos ao solo. Movia-se como bichos.

A dor nos pulmões era cruciante, a cabeça girava. Não era como no fundo do mar, que o ar faltava de uma só vez. Ali a coisa ia aos poucos. A morte demorava, como se precisasse de oxigênio para sua manejar sua foice, mas ele sabia que cedo ou tarde ela chegaria. Vez ou outra se ouvia um estampido. Alguém, no mais profundo desespero, antecipava o fim. Pior quando ouvia quatro, cinco tiros: uma família inteira se fora!

João não tinha uma arma.

As transmissões haviam cessado completamente. Nenhuma voz, nenhuma notícia, nada de esperança. O bebê do vizinho estava morto, assim como a mãe. Ninguém mais enterrava seus defuntos. O pai saíra rastejando pela rua e não voltara mais. Os homens agora se moviam sobre o ventre, como répteis. Despediam-se da vida com o rosto ao chão.

João caiu da cadeira, arrastou-se pela rua passando por cima de aves mortas. Rolou o barranco, tossindo, vomitando com esforço, quase desfalecendo. Fincou os dedos na areia da praia, puxando o corpo. Sorriu quando a primeira onda molhou seu rosto. Olhou para os lados e viu cadáveres; o caminho até o mar interrompido pela asfixia. A humanidade, como amante traída pelos ares que a sequestrara das águas, tateava o retorno ao berço Paleozóico.

Continuou a se arrastar até que as ondas lhe submergissem a cabeça.

João engoliu o primeiro gole, o segundo, o terceiro, enquanto procurava pelos olhos brilhantes dos afogados e pelas mãos que fechariam de vez sua garganta.

Fonte: contosdelitfan.blogspot.com

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