terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O Apartamento 73

Era uma tarde normal de quinta-feira quando estávamos nos preparando para encerrar nosso expediente naquela repartição pública. Eu e mais duas funcionárias conversávamos, aguardando a saída da diretora que ainda estava na sua sala salvado arquivos e desligando o computador. Com um assunto bem corriqueiro, eu e a outras duas servidoras conversávamos sobre a crescente violência na cidade:

– Vale a pena pagar mais para morar num prédio, justamente pela presença de um porteiro e das câmeras.

– É apenas uma sensação de conforto, porque os bandidos também são atraídos pela facilidade e acumulo de bens nos condomínios.

– Isso é verdade, porém eu acho que residir em casa e bem pior.

– Eu sempre residi em casa e só entraram no meu quintal uma vez, para roubar minha bicicleta. Também vão roubar mais o quê na casa de um favelado como eu?

– Foi por isso que mandei fazer um muro bem alto, além do cachorro que avisa quando alguém está próximo. – neste instante surge a nossa chefe já tirando da bolsa a chave do seu carro, quando eu perguntei – A senhora mora em apartamento, não é Dona Josefa? Já teve problemas com a segurança?

A elegante diretora arregalou os olhos verdes esculpidos em um rosto orgulhoso, meditou por dois segundos e se posicionando à nossa frente dando início a este testemunho:



A experiência que eu tenho de apartamentos é apenas uma, já que fui morar nesse que estou assim que me casei. Até os últimos anos jamais tive do que me queixar. O prédio é da década de 1960, época em que meu computador era uma máquina de escrever que cheirava óleo Singer; porém agora eu estou querendo vender meu lar. Sabe aquele lugar onde você passou boa parte dos seus momentos felizes, vi meus filhos crescerem brincado, as visitas das pessoas que tenho afeto, cada recinto e cada parte tem uma recordação agradável. Tudo isso agora já está se apagando. Sendo substituído por uma insatisfação, além da vontade de mudar daquele prédio o quanto antes.

Vai completar um ano das minhas ultimas férias, no primeiro dia eu estava jantando com meu marido na sala de estar, a TV ligada passava o último telejornal. Sabe as habitações projetadas naquela época? Ela tem áreas bem amplas, justamente para satisfazer os anseios de conforto através do espaço. Então, eu comia de costa para a televisão e de frente para o Roberto quando ouvi os sarilhos pela primeira vez. Eram barulhos que viam do teto, como o de uma bola pesada rolando no piso de cima ou, quem sabe, uma criança correndo. Sarilhos, sim, um som igual a alguma coisa rolando bem acelerada. Depois que eu fui deitar escutei novamente os sons do apartamento de cima. Foi no silencio da noite que passei a distinguir tais barulhos, uma vez que não conseguia dormir sob aquela indecifrável intriga. O problema é que não vinham as minhas lembranças nenhum nome dos prováveis moradores lá de cima, meu tempo era muito corrido e quando chagava em casa tinha tantos afazeres que não sobrava nenhum momento para o convívio social com meus vizinhos. Com certeza teriam estes novos moradores um cachorro pequeno. Não, o som assemelhava-se ao de crianças brincado. Mas brincando madrugada adentro?

Nos meus primeiros meses de casada, quando fui morar ali no condomínio, quem residia naquele andar era Dona Margô. Sim, agora lembrei, Dona Margô do 73. Ela sempre estava nas reuniões de condomínio com sua cadeira de rodas, exigindo que colocassem uma rampa no lugar das escadarias na entrada. “O prédio foi construído em 1960, não dava para mudar mais sua arquitetura. – dizia o sindico da época”. Dona Margô quase nunca saía, graças às duas escadarias que o empreendimento possuía, a primeira no hall após o elevadores e a segunda que dava para a rua. Dona Margô era uma senhora sozinha e rabugenta, com suas razões, sempre gritando nas áreas comuns, pedindo ajuda porque queria descer as escadas... Uma vez ela até caiu da cadeira de rodas e arrastou-se pelos degraus gritando palavrões aos moradores que passavam. Esta foi a última vez que ela apareceu em público. Na mesma época que fiquei grávida do meu primeiro filho, soube que Dona Margô tinha morrido dentro de seu apartamento, este que fica em cima do meu, o 73. Depois disso passei anos sem ouvir ruídos lá de cima.

Conforme descansava nas minhas férias, os barulhos das crianças do apartamento 73 tornaram-se algo corriqueiro, que não incomodava muito e nem me espantava mais. Na quarta-feira, quando eu retornava do mercado, encontrei no elevador a minha vizinha do lado. Tivemos aquela conversa básica de vizinhos até chegar ao assunto que também aborrecia a senhora Vera: “As crianças do andar de cima ficam brincado de bola até de madrugada, você consegue dormir?” Respondi que também ouvia mas não me atrapalhavam muito, conclui a conversa já com a minha porta aberta e disse que iria alertar o zelador. Assim que entre interfonei para a portaria quando veio à surpresa, o porteiro confirmou convictamente que não morava ninguém no apartamento 73. Como assim, e os sarilhos que a vizinha e eu ouvíamos?

Bati na porta da senhora Vera para relatar o que tinha me dito o porteiro, ela também ficou pasmada. Resolvemos subir discretamente as escadarias até o andar de cima e tentar distinguir se os sarilhos realmente vinham lá de dentro. Nos aproximamos da porta do apartamento quando sentimos um cheiro forte de coisa suja, como roupas suadas que estavam um bom tempo sem lavar. Assim tivemos a constatação que colocou Dona Vera e eu em alarde, os barulhos vinham lá de dentro! Não pode ser possível, depois de anos o espírito daquela bruaca deficiente retornou para assombrar nosso prédio!

Eu contei sobre o caso para meu marido no mesmo instante que ele chegou em casa, mas a notícia do fantasma do apartamento 73 já estava sendo comentada até pelas crianças na área de recreação. A fofoqueira da Dona Vera tinha propago para todos os moradores sobre os barulhos que vinham lá de cima, isto porque ela queria uma solução imediata. Meu marido Roberto tentou me tranquilizar dizendo que iria ligar para o sindico depois que tomasse um banho, e assim fez. Como resposta o sindico afirmou que talvez fosse algum casal de adolescentes que entrava naquele apartamento para momentos de intimidade, porém aquela farra iria acabar porque no dia seguinte ele iria chamar a administradora do condomínio para entrar no apartamento 73.

O stress que tive naquele dia me fez desabar na cama sem ouvir mais nada, eu acreditava que meu sono viesse junto com a situação resolvida, antes mesmo da reação do sindico. A última coisa que refleti acordada foi em qual das duas coisas era pior: ser assombrada por um encosto senil com rodinhas ou saber que tinha um antro de orgia sobre meu teto?

Enquanto eu tentava levar uma vida de dona de casa, colocando as roupas na máquina e dando um jeito na cozinha, minha campainha tocou. A Dona Vera estava acompanhada do sindico para trazer a noticia de que o condomínio do apartamento 73 esta em dia, no entanto ligaram para o proprietário e este disse que não iria vir para o litoral abrir o apartamento; que contratasse um chaveiro e colocasse a conta no boleto para ele pagar; soube também que o dono do apartamento tinha muitas outras habitações desabitadas, ele era uma pessoa de posses. Assim ambos estavam aguardando a chegada do chaveiro para forçar a tranca daquela intrigante morada.

Me arrepio toda só de lembrar o que vi naquele apartamento aberto! Seria melhor eu ter visto a face do próprio diabo do que aquilo, pelo menos eu não teria a repulsa para ajoelhar-me e pedir perdão a Jesus por minha alma. Eu não pretendia nem estar pisando naquele chão imundo, quanto menos ficar de joelhos para uma prece. A imundice ali dentro era colossal. Tivemos dificuldade em abrir a porta devido a uma pequena crosta de sujeira no piso, desta camada sórdida que cobria o carpete brotava uma rala vegetação devido ao grande tempo de clausura. A madeira da entrada, paredes, estofados, mesa de centro e o móvel do bar estavam imundos e arranhados; igual a alguém que rastejasse há décadas por toda aquela moradia no intuito de levantar-se. Foi quando nós vimos o primeiro, caminhando devagar da cozinha, guinando várias vezes o focinho para cima, tentando farejar-nos... e depois vimos outro, mais outro, e logo eram dezenas! Estávamos paralisados, como um momento de transe antes do acidente, transe que foi interrompido pelo clamor ao Cristo ressuscitado saído dos lábios da Dona Vera; corremos para fora do apartamento quando eles estavam a uns dez metros da gente, selando novamente a porta para talvez nunca mais abrir.

Sabe aquela porra toda? A maior pestilência do mundo bem perto de onde eu durmo! O cheiro, eu ainda sinto o cheiro de ratos podre quando estou concentrada nos meus afazeres domésticos. É o pior odor que já senti. Uma sensação contaminante que se espalha por toda a casa num fedor e causa repúdio; igual uma moléstia que contamina para depois matar... Como exterminar aquela contaminação de roedores?

A primeira equipe de controle de pragas fez uma visita ao local e recusou o serviço, não quiseram indicar nenhuma outra empresa e saíram do prédio assustadíssimos. A segunda empresa também não quis o trabalho, porém nos orientou a chamarmos algum biólogo ou alguém da prefeitura porque aquilo era algo a ser analisado. Foi assim que vieram os técnicos da universidade, convocados pelo controle de zoonoses da cidade. Depois de dois dias de estudos descobriram que aquela era uma colônia de ratos diferente, uma que não sentia medo do ser humano porque nunca tiveram contato conosco. Como indicação pediram que fosse jogada uma isca especial que matasse depois de cinco dias, algo jogado pela janela por pessoas que descessem em cordas para eliminar toda a ninhada sem serem incomodados. Assim foi feito, com um grupo vindo da capital. O prédio todo permaneceu na expectativa, esperando o veneno fazer efeito de maneira eficiente. Agora, o cheiro que eu tinha sentido apenas lá dentro daquela habitação era também percebido por todos os condôminos. Odor que nos fez perceber que o inevitável estava próximo, a morte deteriorada, o consumo da carne adoente. Eu deveria esta satisfeita com a mortandade dos roedores, só que sentia o oposto e tudo aquilo me fez refletir muito sobre minha existência como um ser frágil também. Eu sou alguém que está no topo porém posso sumir num instante, como uma bolha flutuante de sabão. Graças a meu marido que, ao retornar do trabalho à noite, me tirou daquele purgatório de odor reflexivo e doentio, levando-me para passar uns dias no hotel.

Assim eu percebi que o maligno não surge das trevas e nem de qualquer umbral, mas está nesta própria terra.


Eu fiz uma pesquisa detalhada e descobri que este tipo de praga expõe os ratos mais vulneráveis para fazer a coleta dos alimentos que encontram, além de deixarem os ratos mais frágeis comerem primeiro, assim caso a comida esteja contaminada será o elo fraco da colônia que vai morrer. Agora me responda: Quem me garante que aquela grande ninhada de roedores foi completamente exterminada? Nesta consulta eu encontrei uma teoria de um tal Bulwer Lytton – acho que é este o nome – onde diz que "os instintos das criaturas irracionais detectam ameaças letais à sua existência". Provavelmente os membros mais fortes devem ter fugidos da mesma forma que chegaram. Os bichos pestilentos ficaram mais astutos quando depararam com a necessidade de manterem-se vivos e reproduzindo-se.


Nesses últimos dias eu não consigo mais descansar direito, qualquer barulho que escuto já imagino que são aqueles bichos famintos e ordinários. O pior é que os ruídos vêm dos lugares mais ocultos da minha casa, como atrás do guarda roupa, na parte interna das portas ou até dentro dos ralos; algo que só escuto durante o silencio da noite. Sinto que uma coisa de ruim está oculta dentro do meu lar, alguma influência coagida, presente e indiferente ao ser humano. Apesar de ninguém do prédio me dar crédito eu acredito que estão escondidos dentro da minha casa. Já coloquei o apartamento a venda, enquanto isso permaneço numa vigília constante em minhas madrugadas.

Nós assistíamos aquele depoimento hipnotizante da diretora, olhávamos o mover de sua boca, juntamente com os gestos eufóricos das suas mãos e seus olhos verdes mareados. Para quebrar toda tensão gélida, eu concluí dizendo:

– Ah, tá bom! Boa desculpa para chegar atrasada, só que comigo não funciona.

Todos ali riram de forma pesada, Dona Josefa ergueu a cabeça, retornando a ser a discreta e ajuizada senhora de sempre. Assim cada um partiu daquela repartição pública para suas vidas privadas. No dia seguinte a diretora entrou com um pedido de afastamento médico, permanecendo ausente até aposentar-se.

Fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/11/o-apartamento-73.html

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O Amigo de Seis Semanas

Um dos piores sons deste mundo é ouvir um bocado de terra cair sobre a tampa do caixão onde está seu amigo. Após presenciarem seu colega, que em pouco tempo já tinha uma relação fraternal, descansar eternamente embaixo da terra ele partiu de mãos dadas com a mulher chorosa mais a criança. Seguiram para fora do cemitério sem dizerem uma única palavra, em respeito ao morto. Sejamos racionais: Quem nunca acreditou ou iludiu-se com alguém? Seria melhor recapitular este caso para que possamos compreender o que vale em uma amizade.


Seis semanas antes Virgílio, sem aviso prévio, sofreu um mal súbito quando seguia para o trabalho. Ele sentiu uma forte ardência no braço direito, acompanhada pela falta de fôlego, perdeu os sentidos e desabou no piso da lotada estação de metrô. Sua parada cardiorrespiratória virou atração para todos os passageiros, um bom assunto que muitos iriam expor no trabalho. Assim o corpo de Virgílio perdia suas energias vitais no meio daquelas centenas de gente aguardando o próximo trem. A alma do recém-defunto desprendera-se da carne desamparada e doente, ficando ao chão somente um corpo abatido, com coração infartado e ventrículo fibrilando.


– Nada mais pode ser feito, ele já está morto. – sussurrou o médico socorrista para o segurança da estação que estava ao seu lado, mesmo assim ele continuava procurando sinais no infartado.


– Não doutor, o senhor deve fazer uma massagem cardíaca.


– Não dá mais tempo. Ele está sem respirar por mais de dez minutos; já houve a morte do cérebro. Nem o desfibrilador resolve agora.


– Mesmo assim acho que devemos ter fé e fazer uma massagem cardíaca! – disse o segurança tentando assumir o controle do atendimento.


– O médico ainda sou eu e... – dando uma pausa para olhar toda aquela gente em volta, continuou a discutir em voz baixa com o outro ao seu lado – você é o segurança desta estação. Então afaste as pessoas, porque quero tirar o corpo deste tumulto todo.


Os dois se entreolharam numa disputa de autoridade, um conflito entre opiniões distintas. O paramédico estava preocupado com a aglomeração que diariamente agitava a estação, enquanto o segurança queria dar assistência tardia ao morto. O profissional da saúde se levantou e seguiu em direção das pessoas aglomeradas, ordenando de forma irritante e prepotente que afastassem do cadáver e entrassem no trem que se aproximava.


– Olha, ele conseguiu – disse uma moça espantada, apontando sobre o ombro do socorrista.


A população entrou em alvoroço, aplaudindo com grande euforia, olhando na direção onde estava o defunto. O sujeito que deveria resgatar aquele enfartado olhou para trás, notando que o segurança do metrô dava assistência ao moribundo que acabara de despertar dos mortos. O infartado ainda permanecia deitado no chão, mas agora estava consciente e dialogando com seu novo amigo que trabalhava de segurança, única pessoa a fazer uma massagem cardíaca nele.


Virgílio seguiu direto para o hospital mais próximo. Quando a noite chegou, ele assistia as reportagens sobre seu ataque cardíaco em todos os telejornais da TV. As câmeras de monitoramento da estação filmaram toda a ação do profissional da segurança, este estava sendo elogiado na matéria como um verdadeiro herói. Em outro canal específico uma moça era entrevistada – a mesma que apontou por sobre o ombro do socorrista – dizendo que o homem do resgate era mau profissional e todos viram ser negligente com a vida que sofria agonizante na plataforma de embarque do metrô. Os dias trilhavam durante a semana sempre se falando no mesmo assunto, de modo a tomar proporções internacionais, havia até debates calorosos nos programas televisivos da tarde, além da cobrança da opinião publica por uma explicação pela má conduta da equipe de resgate.


Em um dos quartos, no segundo andar do hospital, Virgílio estava esperançoso pois acabava de receber alta. Junto com ele estava sua linda esposa, o filhinho de cinco anos e seu mais novo amigo, o segurança Pedro. Foi Pedro quem devolveu sua vida, lhe fez massagem cárdica enquanto muitos se benziam crendo não haver mais esperança para o infartado. Todos os dias Pedro visitava Virgílio em seu leito porque agora ambos tinham uma comunhão de vida e confiança.


Quando Virgílio passou pela portaria do hospital, acompanhado de sua família mais Pedro, vários jornalistas os aguardavam do lado de fora.


– Estou retornando à minha casa com minha esposa, meu filho e junto com meu novo irmão Pedro. Eu nasci de novo, ressuscitei nos braços deste homem que devo minha vida! – Talvez fosse exagero por parte de Virgílio, mas eram palavras repletas de emoção, faladas perto dos microfones. Com lágrimas nos olhos, abraçando seu filho, esposa e também Pedro, o infartado continuou dando entrevista – Agora tenho que manter minha saúde tomando remédios, fazendo uma dieta saudável e praticar exercícios físicos... Sim, tudo está bem agora... Não guardo magoas de ninguém... Já perdoei aquele socorrista!


Tentando reestabelecer sua rotina decomposta pela doença, toda família tentava conviver com as mudanças que Virgílio faria. Sempre que ele retornava do trabalho fazia uma pausa na estação, tempo para aguardar o termino do expediente de Pedro. Chegando em casa, o infartado fazia uma leve refeição, em seguida corria pelas ruas do bairro com o colega. Pedro adorava conviver com a família de Virgílio, sempre esteve sozinho no mundo, morava em um apartamento alugado junto com um funcionário do trabalho. Em determinados dias da semana o segurança tinha folga, quando Virgílio chegava do serviço encontrava com satisfação o amigo sentado à mesa, tomando café junto com sua mulher. Sem abalar-se o infartado abraçava seu amigo, ainda grato pela nova vida.


– Já está pronto para corrida? – Perguntava o segurança.


– Claro que sim, só espera eu trocar de roupa.


– Querido você acabou de chegar, descanse um pouquinho primeiro – falava a esposa, deixando transparecer que precisava da companhia do marido também, depois completava – aquele filme que você queria assistir no cinema vai passar daqui a pouquinho na TV.


– Não posso assistir, tenho que me manter saudável. Dizia Virgílio sem preocupar-se com a carência da mulher.


Sem dar mais ouvidos, os dois saíram em maratona pela noite. Porém a corrida foi impedida porque o médico socorrista, aquele mesmo que não prestou assistência ao infartado, aguardava os dois na rua com aparência intimidadora.


– O quê está fazendo na frente da minha casa?


O sujeito com expressão de ódio no rosto saca um revolver de trás das costas, aponta para o segurança e, junto com uma grande quantidade de saliva, passa cuspir ofensas:


– Por causa deste filho da égua minha vida está arruinada! Eu fui demitido por uma alegação de incompetência... Sabe o que significa isto... seu guardinha de merda!? Que eu não tenho mais nada a perder!!!


– Calma cara, todos nós cometemos falhas naquele dia. – disse Pedro com as mãos espalmadas para seu inimigo, tentando inutilmente tranquilizá-lo e rematou – nos podemos resolver esta situação juntos, vamos hoje mesmo aos jornais, é apenas um mal-entendido que iremos resolver!


– Você não assistiu? Quando saí do hospital eu disse que tinha te perdoado. Concluiu Virgílio!


– Isto não é com você, sabe por quê? – gritava fora de controle o sujeito armado, apontando o cano para o chão ele prossegue – Porque era para você estar morto... Um defunto que ajudaria todos à sua volta!!!


– Cara isto não é certo, aquela não era a hora de Virgílio. Ele precisava ser reanimado! Falou o segurança.


– Você é mesmo um monte de bosta! Sabe quanto tempo eu estou aqui? Vigiando esta casa? Como tem coragem de dizer que eu estou errado! Toma desgraçado!!!


O assassino descarregou o tambor do revolver contra Pedro, porém Virgílio decidiu que seu herói não deveria morrer, era uma divida que possuía. Assim o pai de família avançou no meio da linha de fogo, tragando todo o aço que entrava em seu corpo. Um bucólico escudo humano defendeu seu salvador, Virgílio blindou seu amigo e desabou agonizando no meio da rua.


*****

Virgílio sobreviveu, novamente estava deitado no mesmo quarto do hospital, recuperando-se misteriosamente de outro choque contra sua vida. Em menos de um mês ele enfartou na plataforma lotada do metrô, foi desenganado por um socorrista que deveria fazer-lhe uma massagem cardíaca, teve sua vida devolvida pelo segurança Pedro e agora tinha tomado seis tiros para proteger este novo amigo. Estava sem paradeiros o criminoso que lhe feriu a tiros, desapareceu como um crápula que era.


Através da janela, notava-se a noite reinar neste lado do Globo. Virgílio abriu os olhos, reparando que o amigo estava sentado ao seu lado a dizer:


– Bem-vindo ao mundo pela terceira vez!


– Olá, tudo bem com meu herói?


– Nada disso, agora estamos quites! Eu te salvei e você empatou tudo. Só o doido que atirou em você ainda esta foragido, fugiu depois que te acertou.


– Pedro, você tem que se prevenir, eu suponho que ele possa voltar para te pegar!


– Que nada, todos os canais de televisão estão divulgando seu retrato, ele deve estar bem longe agora. – Pedro deu uma pausa para criar coragem de fazer a pergunta que já tinha ensaiado, respirou fundo e soltou – Por que você entrou no meio dos tiros? Eu sou um homem que tem quase nada para abrir mão, não tenho nenhum compromisso familiar ou missão neste mundo. Por que Virgílio você fez isto? Não pensou na sua esposa ou filho?


– Você é meu amigo...


– Não é só isso... Qualquer um sabe que outro em seu lugar jamais morreria pelo colega que conhece há pouco tempo. Por quê?


Virgílio olhou a noite que estava do lado de fora, fazendo uma leve careta de repudio, depois encarou seu amigo com afeição e disse:


– Quando você me reanimou na estação, acreditando que eu ainda tinha chances de viver, eu também lutava em outro plano. A sua ressuscitação sobre meu corpo na plataforma do metrô não era a única desavença. Eu estava ali também em outra dimensão, não queria morrer, não era minha hora. Assim, como qualquer outro mortal, eu tentava resistir perante o anjo da morte que queria me levar para o mundo dos falecidos. Só que ninguém mais conseguia vê-lo, somente eu existia contra aquele monstro em forma de gente. Enquanto eu implorava por mais alguns dias nesta carne, a morte caminhava junto com a noite e disse que trazia a solução para todos meus males, pois iria por um fim nas minhas amarguras; novamente eu lhe disse que não queria morrer ainda! O bicho olhou para meu corpo estirado no chão e lá estava você, tentando inutilmente me reanimar, foi você que de alguma forma convenceu a morte em devolver meu espírito. A morte então olhou para mim perguntando se eu desejava testar minhas resistências contra o destino de todos os mortais. Eu respondi suplicante que sim. Em seguida ela fragmentou-se na escuridão, porém antes  disse-me que caso eu sentisse medo ela retornaria para me levar instantaneamente! Eu acordei sentido uma grande comunhão contigo, igual uma ligação entre dois irmãos. Foi por isso que impedi o bandido de acertar você, porque eu temeria pela sua agonia em continuar a viver. Enquanto eu não sentir medo acredito que serei imortal, mas isto é um sarcasmo diabólico pois penso que estou sendo constantemente testado.


Pedro ouvia atônito cada palavra do outro deitado sobre a maca. Acontecimento para se duvidar, porém seu amigo falava com uma convicção veemente, além da situação não ser a propicia para mentir. Ele então olha Virgílio e diz em tom confiante:


– É difícil de acreditar, só que as evidencias estão cicatrizando na sua pele. – colocando as mãos na cabeça, maravilhado pelo discurso do amigo, Pedro levanta e completa – Cara... Muita gente não pensa desta forma, isto pode ser uma experiência pós-traumática... Mas quem sou eu para falar que tal dádiva pode ser fatídica para você!


– Será mesmo uma alucinação? É melhor não pagar pra ver. Contudo não posso ao menos ter um sonho ruim, senão caio duro.


– De uma forma ou outra isto é um milagre! Se for sério como diz então eu queria muito estar no seu lugar!!!


Três dias depois Virgílio retornou para casa, sob os holofotes da imprensa. Uma motivação o contagiava porque não estaria desamparado, seu amigo sabia seu segredo e não deixaria abalar-se. Uma definição mais especifica para amizade é a confiança, sentimento que Pedro não deveria receber já que era amante da mulher do outro. Enquanto Virgílio estava internado, aquele que dizia ser amigo seduziu sua esposa. O paramédico tentou inutilmente alertá-lo, porém a cegueira da desilusão encobria os fatos e suspeitas.


– Como matar alguém que tem parceria até com a morte? – pensava Pedro durante o almoço de ação de graça na casa do amigo, concluindo seu raciocínio de maneira traiçoeira – Tenho que tocar em seu ponto fraco!


A manhã seguinte foi a mais conclusiva, uma manhã de segunda-feira quando o infartado entrou em um dos vagões do metrô para seguir ao trabalho. Sentado distraidamente ele não reparou que o ex-funcionário do resgate acomodou-se ao seu lado. Ele jamais esperava um encontro assim, o cara que por duas vezes quis levá-lo para o cemitério o cumprimentou:


– Virgílio, precisamos conversar. – Virgílio ficou agitado ao perceber o outro no seu lado. De forma branda nas palavras o ex-paramedico quis contê-lo – Escuta o que tenho para dizer, você sabe que eu não lhe farei mal.


– O que você quer maluco? Fala logo, senão eu grito para todos quem é você.


– Rodney, meu nome é Rodney. Eu sei que estou correndo risco, não só o perigo em ser preso mais também que talvez você não possa acreditar em mim, entretanto o cara que diz ser seu amigo está tentando roubar sua família.


– Isto não é verdade! Pedro é como um irmão pra mim.


– Lembra a vez que eu quis matar Pedro e acabei acertando você? Eu passei três dias seguindo ele, acompanhando a rotina dele quando vi...


– O que você viu?


– Eu não posso dizer, você tem que voltar para casa e tirar suas próprias conclusões. – Rodney estendeu a mão e mostrou um embrulho para Virgílio, continuando – Leve isto, você sabe o que é, vai precisar e não hesite em usar.


O infartado pegou o embrulho, sentindo que era pesado e consistente devido à densidade do metal contido dentro. Virgílio olhou para o outro, tentando não abalar-se e disse:


– O que é isso? Você tem ideia do que está querendo?


Rodney olhou no fundo dos olhos de Virgílio, tentando mostrar que a comunhão dele pelo amigo não valia à pena:


– Você venera tanto aquele sujeito e não enxerga o que está a sua frente, não é? – e pressionando as mãos que agarrava o embrulho, encostando no peito de quem segurava, Rodney persistiu – Quando você passou pela estação não viu seu camarada, sabe onde ele está?


– Ele está de folga. Balbuciou Virgílio, já deixando transparecer suas duvidas.


– Volta para casa homem. Sua família está com aquele bandido!


Seguindo a contramão do fluxo que trilhava para o labor cotidiano, o infartado decide retornar para casa, tentando manter a cabeça fria e razão alinhada no autocontrole. Se bem que falar em razão para uma pessoa que morrerá quando sentir medo é bem contraditório. Realmente descobrir que está sendo traído pela esposa, junto com o melhor amigo e flagrar os dois é ato que coloca toda valentia de um homem a prova.


Virgílio entrou em casa próximo das nove horas, encontrando seu filhinho sozinho na sala assistindo televisão. O pai abraça sua criança, indagando onde estaria sua mãe. O menino apenas aponta para o quarto do casal que estava com a porta trancada. Ele deixa o menino no sofá e segue de arma em punho na direção do dormitório. Quando encostou o rosto na porta escuta nitidamente os gemidos prazerosos da sua mulher. Em uma ação de bravura, junto com as forças das pernas de corredor, Virgílio arromba a porta com dois chutes e enxerga o que era esperado. Ele deparou-se com os dois pelados sobre a cama, uma traição que fez a ferida dentro do seu coração reabrir novamente, embora agora não era uma dor cardiovascular que sentia e sim a decepção de flagrar seu precioso amor num ato de infidelidade. Virgílio mal conseguiu reprimir o que sentia, seu coração estava quebrantado...


*****


Estavam os dois adultos saindo com a criança do cemitério, homem e mulher caminhavam sem dizer uma palavra em memória ao morto. Não há som pior que ouvir o barulho oco da terra caindo sobre a tampa de um caixão. Um taxi os aguardava na saída, então Virgílio abriu a porta de trás do veículo para a mulher entrar com seu filho e seguiu para sentar ao lado do motorista.


Ninguém estava feliz naquele dia, mas havia alívio pelo pesado fardo que ambos deixaram de carregar. Virgílio foi forte para matar o colega a quem devia sua vida, só que a mesma bravura não foi capaz de ter com sua mulher. Ele temia viver sem ela, assim morreria também. Agora Virgílio tinha um propósito para sua imortalidade: Tentar fazer sua mulher feliz, dar assistência que a esposa nunca teve. Porém, quando ela ficar fraca pela velhice, não resistindo ao destino de todos os viventes e morrer, ele então temerá sua perda e será enterrado junto com sua amada.


– Obrigado Rodney! Pensou o infartado enquanto o taxi partia.


Rodney estava observando o carro sair, escondido entre as árvores do cemitério. Sobre ele recaiu a culpa pela morte de Pedro. Foi esta a versão dada em depoimento à polícia.

Fonte:http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/12/o-amigo-de-seis-semanas.html

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Lembrar... Esquecer...

Eu acabei de abrir os olhos...

Olho ao meu redor e vejo telas. Milhares delas.

Eu estava sentado em uma cadeira. A única coisa notável em meu jaleco branco, além do sangue, era aquela enorme suástica. Ela estava nos monitores também. Olhei ao meu redor e não vi ninguém. Minha voz ecoava como se me apresentasse a solidão.

Tentei levantar, mas um capacete em minha cabeça me impediu. Dele, saía um fio que estava ligado a um computador à minha direita. Do computador saía outro fio ligado a um controle em minhas mãos. O controle tinha dois botões. Um escrito "Lembrar" e outro escrito "Esquecer".



Não tinha lembrança alguma, sequer de quem eu era. Rapidamente apertei o botão "Lembrar".

Senti todos as lembranças, todos os momentos sendo reintroduzidos em minha mente. Tudo de uma vez. Meu olhos reviravam enquanto cada segundo de minha vida passava nos meus olhos em alta velocidade.

Naquele momento lembrei de todas atrocidades que havia cometido. E principalmente, porque estava ali... Tinha medo de que houvesse algo após a morte. Apenas lembrar disso tudo seria um tormento para minha alma. Num momento de desespero apertei o botão "Esquecer".

Eu acabei de abrir os olhos...

Olho ao meu redor e vejo telas...

Fonte: http://medosensitivo.blogspot.com.br

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Horror No Museu - H. P. Lovecraft

Foi apenas curiosidade o que levou Stephen Jones ao Museu Rogers pela primeira vez. Alguém lhe falara a respeito do estranho lugar subterrâneo na Southwark Street, do outro lado do rio, onde criaturas de cera muito mais horrendas que as piores efígies do Madame Tussaud estavam expostas; e num dia de abril ele resolveu entrar para conferir que tipo de desapontamento iria ter. Curiosamente, não se desapontou. Afinal, alguma coisa diferente e notável estava ali. Decerto, os velhos lugares-comuns sangüinários não poderiam faltar: Landru, Doutor Crippen, Madame Demers, Rizzio, Lady Jane Grey, infindáveis vítimas da guerra e da revolução, e monstros como Gilles de Rais e o Marquês de Sade; mas também outras coisas que aceleraram sua respiração e o fizeram permanecer até ouvir o toque de fechar. O homem que tinha montado aquela coleção não poderia ser um charlatão ordinário. Havia imaginação, e até um toque de genialidade doentia, em algumas das peças.

Mais tarde ele se informou sobre George Rogers. O homem tinha sido da equipe do Tussaud, mas algum problema ocorrera que resultara em sua demissão. Ouviram-se rumores acerca de sua sanidade mental e notícias sobre suas loucas formas de adoração secreta; embora, finalmente, o sucesso de seu próprio museu no porão acabasse embotando o gume de algumas críticas, ao mesmo tempo em que aguçava a ponta insidiosa de outras. Teratologia e iconografia do pesadelo eram seus passatempos; e ele teve mesmo a prudência de alojar discretamente algumas de suas piores efígies numa alcova especial, destinada somente aos adultos. Foi essa alcova que tanto fascinou Jones. Havia coisas híbridas e disformes que só a fantasia seria capaz de gerar, moldadas com arte diabólica e coloridas de um modo horrivelmente realístico.



Algumas eram figuras de mitos bem conhecidos: górgonas, quimeras, dragões, ciclopes e todos os seus arrepiantes congêneres. Outras tinham sido tiradas de mais obscuros e só furtivamente murmurados ciclos de lendas subtérreas: o negro e disforme Tsathoggua, o multitentacular Cthulhu, o trombudo Chaugnar Faugn, e outras indizíveis blasfêmias extraídas de livros proibidos como o Necronomicon, o Livro de Eibon ou o Unaussprechlichen Kulten, de Von Junzt. Mas as piores eram criações originais de Rogers, representando formas que nenhuma narrativa da antigüidade teria alguma vez ousado descrever. Muitas eram repulsivas paródias das formas da vida orgânica que conhecemos, enquanto outras pareciam ter sido sacadas de sonhos febris de outros planetas e galáxias. As mais selvagens pintadas por Clark Ashton Smith podem sugerir algumas; mas nada se compararia ao efeito de pungente, repelente terror gerado pelas suas grandes dimensões e delirante acabamento artesanal e pelas condições de luz diabolicamente perspicazes sob as quais eram exibidas.

Stephen Jones, como um descompromissado connoisseur do bizarro na arte, procurara Rogers pessoalmente no sombrio escritório e estúdio que ficava atrás do salão de teto abobadado do museu – uma cripta de aspecto demoníaco, obscuramente iluminada por janelas de correr poeirentas, dispostas horizontalmente no nível dos paralelepípedos de um pátio escondido. Nesse lugar é que se fazia a manutenção das imagens, e ali, também, algumas tinham sido produzidas.

Braços de cera, pernas, cabeças e torsos jaziam em grotesca desordem sobre vários bancos, ao passo que nas prateleiras das estantes se viam perucas, dentes e olhos mortiços de vidro espalhados indiscriminadamente. Vestimentas de todos os tipos pendiam de ganchos; e numa dada alcova havia grandes pilhas de cera cor-de-carne e prateleiras repletas de latas de tinta e pincéis de todos os formatos. No centro do cômodo estava a grande forja para preparar a cera a ser moldada, sua larga boca ocupada por um vasto container de ferro com alças, ao qual se ligava um tubo que permitiria despejar a cera derretida com um simples toque de dedo.

Outras coisas, na cripta penumbrosa, seriam mais difíceis de descrever: partes isoladas de entidades problemáticas cujas formas agrupadas eram fantasmas de delírio. Numa das extremidades via-se uma porta de madeira maciça, trancada por um cadeado de tamanho incomum, sobre a qual se achava pintado um símbolo bastante peculiar. Jones, que já tivera acesso ao temível Necronomicon, estremeceu involuntariamente ao reconhecer aquele símbolo. Este expositor, refletiu, deve ser alguém de um saber desconcertantemente vasto acerca dos assuntos dúbios e negros.

Também a palestra de Rogers não o desapontou. Era um homem alto, esguio e assaz desalinhado, os grandes olhos negros brilhando em combustão em meio a uma face pálida e mal barbeada. Não se incomodou com o aparecimento de Jones e antes pareceu saudar a ocasião de poder se abrir com uma pessoa interessada. Sua voz era de uma profundidade e de uma ressonância singulares, mal dissimulando uma ponta de intensidade represa, que bordejava mesmo com o fervor. Jones não se espantou de que muitos o tivessem julgado louco.

A cada nova visita (e as visitas se tornaram habituais com o passar das semanas), Jones encontraria Rogers mais comunicativo, mais inclinado às confidências. No princípio, tinha havido rumores de crenças e práticas estranhas, da parte do expositor, e mais tarde esses rumores se expandiram em histórias, não obstante umas poucas e estranhas fotografias corroborantes, cuja extravagância roçaria pelo cômico. Foi em junho, numa noite em que Jones trouxera uma garrafa de bom uísque e pôde conversar mais livremente com seu anfitrião, que o discurso realmente insano despontou. Antes disso, haviam surgido histórias delirantes demais – relatos de viagens ao Tibete, ao interior da África, ao deserto da Arábia, ao vale do Amazonas, ao Alasca e a certas ilhas pouco conhecidas do Pacífico Sul, além de declarações acerca de ter lido livros monstruosos como os fragmentos Pnacóticos e os cantos Dhol atribuídos ao maligno e inumano Leng -, mas nada disso fora tão inequivocamente insano quanto o que veio à tona, sob o influxo do uísque, naquele anoitecer de junho.

Mais abertamente, Rogers passou a se gabar de ter encontrado certas coisas na natureza que ninguém encontrara antes e de ter trazido à luz evidências de tais descobertas. De acordo com sua arenga, tinha ido mais longe do que qualquer outro na interpretação desses livros obscuros e primevos que estudara, e fora orientado por eles para certos lugares remotos onde insólitos remanescentes se ocultavam – remanescentes de éons de ciclos de vidas mais antigos que a humanidade e em alguns casos conectados com outras dimensões e outros mundos, mundos e dimensões com os quais a comunicação seria freqüente em dias pré-humanos. Jones se maravilhava com uma fantasia tão capaz de conjurar semelhantes noções e se perguntava qual seria a real história mental de Rogers. Teria sido o seu trabalho em meio ao grotesco mórbido do Madame Tussaud o ponto de partida para suas fugas imaginativas ou se tratava de uma tendência inata, da qual a escolha de sua ocupação fora apenas uma das manifestações? De qualquer modo, o trabalho do homem estava como que ligado a essas noções. Mesmo agora não havia que se equivocar com o curso de suas mais negras sugestões acerca das monstruosidades de pesadelo ocultas atrás da porta onde se lia “Para adultos somente”. Infenso ao ridículo, ele tentava sugerir que nem todas essas anormalidades demoníacas eram artificiais.

Foi mesmo o ceticismo e o espanto de Jones diante dessas declarações irrespondíveis que acabaram quebrando a crescente cordialidade. Rogers – estava claro – se levava muito a sério, pois agora se tornava moroso e ressentido, continuando a tolerar Jones somente ao preço de um incontido impulso de romper o muro de sua incredulidade urbana e complacente. Contos e sugestões delirantes de ritos e sacrifícios prestados a inomináveis deuses antigos continuavam; e aqui e ali Rogers mostraria ao hóspede uma das ultrajantes blasfêmias na alcova reservada e apontaria detalhes difíceis de conciliar mesmo com a mais refinada artesania humana. Jones prosseguiu, fascinado, com suas visitas, embora soubesse que tinha desmerecido os interesses de seu anfitrião. Às vezes, tentaria animar Rogers com um fingido assentimento a alguma sugestão ou asserção maluca, mas o magro expositor raramente se deixaria enganar por essas táticas.

A tensão atingiu o ápice mais tarde, em setembro. Jones entrou casualmente no museu, num certo entardecer, e perambulava pelos corredores sombrios, cujo horror lhe era agora familiar, quando ouviu um som bastante sinistro, proveniente do estúdio de Rogers. Outros o ouviram também e, nervosamente, saíram em disparada, enquanto os ecos reverberavam através do grande porão de teto arqueado. Os três assistentes trocaram olhares significativos; um deles, um sujeito negro e taciturno, com ar de estrangeiro, que sempre servira Rogers como reparador e desenhista assistente, sorriu de um modo que pareceu intrigar seus colegas e que tocou profundamente alguma faceta da sensibilidade de Jones. Parecia o ganido ou o uivo de um cão e era um som que só poderia ser produzido sob condições do mais extremo terror e agonia combinados. Seu frenesi agudo, angustiado, era impressionante de ouvir e, em toda a sua grotesca anormalidade, continha algo duplamente aterrorizante. Jones se lembrou de que não eram permitidos cachorros no museu.

Estava prestes a ir até a porta que conduzia ao estúdio, quando o atendente negro o deteve com uma palavra e um gesto. O Sr. Rogers – o homem disse, numa voz suave e algo acentuada que não escondia qualquer coisa de apologético e sardônico – tinha saído, e havia ordens expressas para não deixar que ninguém entrasse no estúdio durante sua ausência. Quanto àquele uivo, proviera certamente de alguma coisa lá fora, do pátio aos fundos do museu. A vizinhança estava cheia de vira-latas, cujas brigas costumavam ser chocantemente barulhentas. Não havia cães em parte alguma do museu. Mas, se o Sr. Jones quisesse ver o Sr. Rogers, poderia encontrá-lo antes da hora de fechar.

Depois disso, Jones galgou os velhos degraus de pedra até a rua e examinou com curiosidade os esquálidos arredores. Os edifícios magros, decrépitos – que uma vez foram residências, mas que agora eram na maioria lojas e armazéns – eram de fato muito antigos. Alguns deles eram de um tipo que parecia remontar à época dos Tudors, e um fedor algo miasmático pairava sutilmente por toda a região. Ao lado da casa sombria cujo porão servia de museu havia uma passagem em arco, não muito alta, cortada por um caminho de pedras escuras, e foi por ela que Jones enveredou na vaga expectativa de encontrar o pátio dos fundos e ajeitar em sua mente, de um modo mais confortável, o caso do cachorro. O pátio, obscurecido na fraca luz do entardecer, estava cercado ao fundo por muros mais feios e intangivelmente ameaçadores do que as fachadas decadentes do casario vetusto e maligno. Não se via nenhum cachorro. Jones se perguntou como o resultado de tamanho frenesi poderia ter se desvanecido tão depressa e tão completamente.

Apesar da declaração do assistente de que nenhum cachorro tinha estado no museu, Jones examinou com nervosismo as três pequenas janelas do estúdio subterrâneo, estreitos e horizontais retângulos colados ao piso onde a erva crescia, seus vidros ostensivos a mirar repulsivamente e sem curiosidade como os olhos de um peixe morto. À sua esquerda um lance carcomido de degraus conduzia a uma obscura porta de pesadas dobradiças. Um impulso lhe veio de se abaixar sobre os paralelepípedos úmidos e partidos e espiar lá dentro, na possibilidade de que os espessos cortinados verdes, movidos por longos cordões que desciam até um nível alcançável, não poderiam ser afastados. As superfícies externas estavam grossas de poeira, mas quando as esfregou com o lenço percebeu que não havia nenhuma cortina obstruindo a visão.

Tão penumbroso era o interior do porão que pouca coisa se podia ver, mas a grotesca parafernália se deixava lobrigar espectralmente aqui e ali, enquanto Jones observava janela por janela. Parecia evidente, a princípio, que ninguém estava dentro; no entanto, quando ele espiou através da janela da extrema direita – aquela mais próxima do caminho de entrada -, avistou um brilho ao fundo do compartimento que o fez estacar surpreendido. Não havia razão para que nenhuma luz estivesse ali. Tratava-se de uma parte interna do cômodo, e ele não podia lembrar-se de haver nenhuma lâmpada elétrica ou a gás perto daquele ponto. Uma outra olhadela definiu o brilho como sendo um largo retângulo vertical, e um pensamento lhe ocorreu. Era naquela direção que ele tinha sempre reparado na grande porta de madeira com o imenso cadeado – a porta que nunca era aberta e sobre a qual se estampava cruamente aquele pavoroso símbolo críptico proveniente dos documentos fragmentários de uma magia ancestral e proibida. Devia estar aberta agora, e havia uma luz lá dentro. Toda a sua especulação anterior sobre o lugar aonde aquela porta levaria e sobre o que haveria por trás foi então renovada, com uma intensidade triplamente inquietadora.

Jones perambulou a esmo pela opressiva localidade até próximo das seis horas, quando voltou ao museu para procurar Rogers. Dificilmente poderia dizer por que ansiava tanto em ver o homem assim de imediato; contudo devem ter influído nessa disposição algumas suspeitas subconscientes acerca daquele uivo canino da tarde, terrivelmente difícil de situar, e acerca do brilho naquela porta perturbadora do interior, que usualmente permanecia fechada com o maciço cadeado. Os assistentes estavam de saída quando ele chegou, e achou que Orabona, o negro assistente de aparência estrangeira, o olhava com uma curiosidade sub-reptícia e contida. Não gostava daquele olhar, mesmo tendo visto o sujeito dirigi-lo ao seu patrão noutras ocasiões.

O salão de teto abaulado parecia aterrorizante em seu abandono, mas ele o atravessou velozmente e bateu na porta do escritório e estúdio. A resposta demorou a vir, embora se ouvissem passos lá dentro. Finalmente, em resposta a uma segunda batida, a fechadura estalou, e o antigo portal de seis painéis rangeu relutantemente antes de pôr à mostra o vulto devastado e de olhar febricitante de George Rogers. Logo de saída ficou claro que o expositor se achava num estado de espírito incomum. Havia uma curiosa mistura de relutância e de real avidez em sua saudação, e seu modo de falar derivava para extravagâncias do tipo mais incrível e horripilante.

Antigos deuses sobreviventes – inomináveis sacrifícios – a outra natureza além daquela, artificial, dos horrores da alcova – toda a lengalenga usual, mas pronunciada num tom de confiança algo crescente. Obviamente, refletiu Jones, a loucura do pobre o estava dominando mais e mais. Vez por outra, Rogers lançaria olhadelas furtivas em direção à porta trancada no final do cômodo ou em direção a um pedaço de áspera aniagem que jazia no chão, não muito distante dele, sob o qual algum objeto pequeno parecia estar colocado. Jones ficou mais nervoso à medida que os momentos passavam e começou a se sentir tão hesitante em mencionar os estranhos eventos da tarde quanto há pouco tinha estado ansioso por fazê-lo.

O tom sepulcralmente grave da voz de Rogers quase se partia sob a excitação de seu delírio febril.

- Você se lembra – gritou – do que eu lhe contei acerca daquela cidade em ruínas da Indochina onde os tcho-tchos viviam? Teve de admitir que estive lá, quando viu as fotografias, mesmo se achasse que eu fiz às escuras aquele nadador oblongo de cera. Se você o tivesse visto contorcendo-se nos poços subterrâneos como eu vi…

“Bem, este é maior ainda. Nunca lhe falei sobre este, porque desejava trabalhar as últimas partes antes de fazer qualquer anúncio. Quando você vir os instantâneos, saberá que a geografia não poderia ter sido falsificada; e eu creio que tenho outro meio de prová-lo. Não se trata de nenhuma mistura de cera que fiz. Você nunca o viu, porque os experimentos não me permitiriam mantê-lo em exibição.”

O exibidor olhou de um modo estranho para a porta trancada.

-          Tudo provém daquele longo ritual no oitavo fragmento pnacótico. Quando me dei conta, vi que poderia ter apenas um significado. Havia coisas no norte antes que a terra de Lomar – antes que a humanidade existisse; e esta era uma delas. Vasculhamos tudo até o Alasca, partindo de Fort Morton até Nootak, mas a coisa estava lá, como sabíamos que estaria. Grandes ruínas ciclópicas, cobrindo acres inteiros. Havia sobrado menos do que esperáramos, mas após três milhões de anos o que se poderia desejar? E não estavam as lendas esquimós todas na direção certa? Não podíamos forçar um deles a ir conosco, e tivemos de esquiar de volta até Nome em busca de americanos. Orabona não tinha utilidade naquele clima, tornou-se taciturno e odioso.

“Mais tarde lhe contarei do modo como a encontramos. Quando removemos o gelo dos pilonos da ruína central, a escadaria era exatamente como pensamos que seria. Viam-se ainda alguns entalhes, e não houve problemas em impedir que os yankees nos seguissem ao entrarmos. Orabona tremia como uma folha – você nunca suporia, vendo o modos insolentes que ele exibe por aqui. Ele conhecia o bastante sobre as velhas lendas, para estar devidamente amedrontado. A luz externa tinha acabado, mas nossos archotes mostravam o bastante. Vimos os ossos de outros que tinham existido antes de nós éons atrás, quando o clima era quente. Alguns desses ossos eram de coisas que você não poderia sequer imaginar. No terceiro nível abaixo, encontramos o trono de marfim, do qual os fragmentos tanto falavam – e posso lhe dizer que não estava vazio.

“A coisa no trono não se movia, e então percebemos que Ele precisava ser alimentado por algum sacrifício. Mas não pretendíamos acordá-Lo. Melhor levá-Lo para Londres primeiro. Orabona e eu nos arrojamos à superfície da grande caixa, mas quando O embalamos, vimos que não poderíamos subir com Ele os três lances de degraus. Esses degraus não foram construídos para seres humanos, suas dimensões nos dificultavam. De qualquer modo, era pesado em excesso. Tivemos de chamar os americanos para O tirarmos de lá. Não estavam nada animados a entrar no lugar, mas certamente a coisa pior já estava dentro da caixa. Dissemos a eles que se tratava de uma peça de marfim esculpido, material arqueológico; e, ao verem o trono entalhado, provavelmente acreditaram em nós. É um espanto que não tenham suspeitado de um tesouro oculto e que não tenham exigido uma parte. Devem ter contado estranhas histórias acerca de Nome, mais tarde; embora eu duvide de que tenham retornado às ruínas, mesmo pelo trono de marfim.”

Rogers fez uma pausa, procurou em sua escrivaninha e tirou um envelope com fotografias de tamanho grande. Extraindo uma e colocando-a com a face virada para baixo à sua frente, passou as restantes a Jones. O conjunto era certamente espantoso: colinas cobertas de gelo, trenós puxados por cães, homens envolvidos em peles, e vastas ruínas decadentes contra um fundo de neve – ruínas cujos contornos bizarros e cujos blocos enormes de pedra dificilmente poderiam ser descritos. Uma vista à luz do flash mostrava uma incrível câmara interior com entalhes selvagens e um trono curioso cujas proporções não poderiam ter sido desenhadas para um ocupante humano. Os entalhes da alvenaria gigantesca – altas paredes peculiarmente abobadadas

-          eram grandemente simbólicos e envolviam tanto desenhos completamente desconhecidos quanto certos hieróglifos citados de modo sombrio em legendas obscenas.  Sobre o trono estampava-se o mesmo símbolo temerário que se via pintado acima da porta de madeira da oficina. Jones lançou um olhar nervoso àquele portal fechado. Com toda certeza, Rogers andara por lugares estranhos e vira coisas estranhas. Entretanto aquela fotografia louca do interior podia ser facilmente uma fraude – tirada de um cenário bem montado. Não se deve ser tão crédulo. Mas Rogers continuava.

-          Bem, embarcamos a caixa num navio que saía de Nome e chegamos a Londres sem nenhum problema. Foi a primeira vez em que trouxemos alguma coisa com chances de estar viva. Não o coloquei em exibição, porque havia algo mais importante a fazer por Ele. Precisava do alimento sacrificial, pois se tratava de um deus. Obviamente eu não poderia Lhe dar o tipo de sacrifícios que Ele costumaria receber em sua época, pois tais coisas não existem agora. Mas havia outras que podiam servir. O sangue é a vida, você sabe. Mesmo os lêmures e os elementais que são mais velhos do que a terra hão de vir quando o sangue de homens ou animais for oferecido sob as condições corretas.

A expressão na face do narrador estava se tornando mais e mais alarmante e repulsiva, o que fez Jones estremecer em sua cadeira. Rogers pareceu notar o nervosismo de seu hóspede e prosseguiu, com um sorriso distintamente mau:

-          Foi no último ano que O consegui e desde então tenho tentado ritos e sacrifícios. Orabona não tem sido de muita ajuda, pois esteve sempre contra a idéia de despertá-Lo. Ele O odeia, provavelmente porque teme o que Ele poderá vir a significar. Carrega uma pistola durante todo o tempo, para se proteger – tolo, como se houvesse proteção humana contra Ele! Se alguma vez o vir sacar a pistola, o estrangularei. Queria que eu O matasse e fizesse uma efígie d’Ele. Mas já tracei meus planos e estou chegando ao topo, a despeito de todos os covardes como Orabona e dos malditos céticos de nariz empinado como você, Jones! Já entoei os cantos e realizei certos sacrifícios, e na semana passada a transição ocorreu. O sacrifício foi – recebido e apreciado!

Rogers lambia mesmo os lábios, enquanto Jones se mantinha incomodamente rígido. O expositor parou e se ergueu, cruzando o cômodo em direção ao pedaço de aniagem para o qual vinha olhando freqüentemente. Abaixando-se, agarrou um dos cantos e voltou a falar:

-          Você já riu bastante de minha obra – e agora é hora de conhecer alguns fatos. Orabona me diz que você ouviu um cachorro ganir por aqui esta tarde. Sabe o que isso significava?

Jones olhava. Apesar de toda a sua curiosidade, teria preferido ir embora sem obter maiores luzes acerca do ponto que tanto o intrigara. Mas Rogers foi inexorável e começou a levantar o quadrado de aniagem. Debaixo dele jazia uma massa retorcida e quase disforme que Jones demorou a classificar. Seria alguma coisa que vivera e que algum agente comprimira, privara de todo o sangue, espicaçara em mil lugares e costurara num monte mole e desossado de puro grotesco? Após um instante, Jones compreendeu o que poderia ser. Era o que restara de um cachorro – um cachorro, talvez de tamanho considerável e de uma cor esbranquiçada. A raça estava além de qualquer reconhecimento, porque a distorção tinha acontecido de um modo inominável e ultrajante. Grande parte do pêlo fora queimada por algum tipo de ácido, e a pele exposta e exangue estava marcada por inumeráveis feridas de incisões circulares. A forma de tortura necessária para obter semelhantes resultados teria sido inimaginável.

Eletrizado por uma pura repulsa que ultrapassava seu crescente desgosto, Jones explodiu num grito:

-          Seu sádico maldito, seu demente, você faz uma coisa dessas e ainda ousa vir falar a um homem decente!

Rogers repôs a aniagem com um ricto maligno de desdém e encarou sem furioso hóspede. Suas palavras portavam uma calma pouco natural:

-          Ora, seu tolo, pensa que eu fiz isto? O que dizer? Não é humano e não tem intenção de ser. Sacrificar é meramente oferecer. Eu dei a Ele o cachorro. O que aconteceu é obra d’Ele, não minha. Precisava ser alimentado com a oferta e a tomou à sua própria maneira. Mas deixe-me mostrar a você com o que Ele se parece.

Enquanto Jones hesitava, o outro foi até sua escrivaninha e apanhou a fotografia que tinha colocado com a face para baixo. Agora, estendia-a com um olhar curioso. Jones recebeu-a e examinou-a de um modo quase mecânico. Após um momento, o olhar do visitante se tornou mais concentrado e mais absorto, pois a força satânica do objeto representado tinha um efeito quase hipnótico. Certamente, Rogers tinha se superado em modelar o pesadelo feérico que a câmera capturara. A coisa era obra de um gênio férvido e infernal, e Jones se perguntou como o público reagiria quando fosse colocada em exibição. Algo tão monstruoso não tinha direito de existir – provavelmente a mera contemplação do mesmo, depois que fora feito, teria completado o desajuste na mente de quem o fizera, levando-o a uma adoração com sacrifícios brutais. Só uma firme sanidade poderia resistir à sugestão insidiosa de que tal blasfêmia era – ou teria sido -alguma forma exótica e mórbida de vida efetiva.

A coisa na imagem estava agachada ou se balançava sobre o que parecia ser uma engenhosa reprodução do trono monstruosamente entalhado da outra fotografia curiosa. Descrevê-la com qualquer palavra comum teria sido impossível, pois o que quer que seja de minimamente parecido com ela jamais ocorreu à imaginação da humanidade sã. Representava alguma forma vagamente conectada com os vertebrados deste planeta – embora não se pudesse ter certeza disso. Sua compleição era ciclópica, já que mesmo agachada sua altura dava quase duas vezes a de Orabona, o qual aparecia ao seu lado. Examinando atentamente, seria possível traçar suas aproximações com as feições corporais dos vertebrados superiores.

Havia um torso quase globular, com seis longos e sinuosos membros terminando em patas de crustáceo. Da extremidade superior protuberava, como uma bolha, um glóbulo subsidiário; seu triângulo de três olhos fixos de peixe, sua tromba de um pé de comprimento e evidentemente flexível, e um sistema lateral distendido, semelhante a guelras, sugerindo que se tratava de uma cabeça. Grande parte do corpo era coberta pelo que a princípio parecia ser pêlos, mas que a um exame mais atento provava ser uma densa floração de tentáculos negros e delgados ou filamentos de sucção, cada qual terminando numa boca que sugeriria uma cabeça de áspide. Sobre a cabeça e abaixo da tromba os tentáculos tendiam a ser mais longos e grossos, marcados com tiras espiraladas – sugerindo as tradicionais serpentes-madeixas da Medusa. Insinuar que aquilo podia ter uma expressão parece paradoxal; no entanto Jones sentiu que aquele triângulo de olhos protuberantes de peixe e aquela tromba pousada obliquamente exalavam um ar de ódio, voracidade e gritante crueldade, incompreensível aos humanos porque se misturava a outras emoções estranhas a este mundo e a este sistema solar. Nessa anormalidade bestial, refletiu, Rogers devia ter despejado de uma só vez toda a sua maligna insanidade e todo o seu inaudito gênio escultórico. A coisa era incrível – e, não obstante, a fotografia provava sua existência.

Rogers interrompeu suas divagações.

-          Bem, o que acha d’Ele? Ainda tem dúvidas sobre o que estraçalhou o cachorro e o sugou inteiro com um milhão de bocas? Precisava de alimento – e precisará de mais. Ele é um deus, e eu sou o primeiro sacerdote de Sua hierarquia final. Iä! Shub-Niggurath! O Bode com os seus Mil Jovens!

Jones baixou a fotografia, com desgosto e pena.

-          Olhe aqui, Rogers, é melhor abandonar isso. Existem limites, você sabe. É um grande trabalho, e tudo o mais, mas não faz bem a você. Melhor não o ver mais – deixar que Orabona o quebre e tentar esquecê-lo. E deixe-me rasgar essa reprodução bestial também.

Com um resmungo, Rogers arrebatou a fotografia e devolveu-a à escrivaninha.

-          Idiota – você – e ainda pensa que Ele seja uma fraude! Ainda acha que eu O fiz e ainda acha que minhas figuras não são mais que cera inerte! Ora, que se dane, você saberá. Não agora, porque Ele está descansando após o sacrifício, mas mais tarde. Oh, sim, você não duvidará de Seu poder então.

Enquanto Rogers olhava para a porta interna com o cadeado, Jones apanhou seu chapéu e sua bengala de um banco próximo.

-          Muito bem, Rogers, deixe para mais tarde. Preciso ir agora, mas o procurarei de novo amanhã ao entardecer. Reflita sobre meu conselho e veja se não faz sentido. Pergunte a Orabona o que ele acha também.

Rogers arreganhou os dentes de um modo animalesco.

-          Precisa ir agora, hein? Com medo, afinal! Com medo, apesar de toda a fanfarronice! Você diz que as efígies são apenas cera e, no entanto, dá o fora quando começo a provar que não o são. Você é como os demais que aceitam minha aposta de que não ousam passar uma noite inteira no museu – chegam valentemente, mas depois de uma hora gritam e esmurram a porta implorando para sair! Quer que eu consulte Orabona, hein? Vocês dois – sempre contra mim! Vocês querem barrar o estabelecimento de Seu reino vindouro!

Jones manteve a calma.

-          Não, Rogers, não há ninguém contra você. E não estou com medo de suas figuras, também, até porque admiro sua arte. Mas estamos ambos um pouco excitados esta noite, e imagino que algum descanso nos fará bem.

Outra vez Rogers barrou a saída de seu hóspede.

-          Sem medo, hein? Então por que está tão aflito em sair? Olhe aqui, você tem ou não tem coragem de ficar aqui sozinho no escuro? Por que tanta pressa, se você não acredita n’Ele?

Uma nova idéia parecia ter ocorrido a Rogers, e Jones olhou-o atentamente.

-          Ora, não tenho nenhuma pressa em especial; mas de que adiantaria eu permanecer sozinho aqui? O que isso provaria? Minha única objeção é que não é confortável para dormir. Que benefício traria para qualquer de nós?

Dessa vez, foi a Jones que ocorreu uma idéia. Ele prosseguiu, num tom de conciliação:

-          Pense bem, Rogers; apenas lhe perguntei o que seria provado se eu ficasse, quando nós dois o sabemos. Seria provado que suas efígies são apenas efígies, e que você não devia deixar sua imaginação fluir como tem fluído ultimamente. Suponha que eu fique. Se eu me mantiver firme  até o amanhecer, você aceitará uma nova visão das coisas, tirará umas férias e deixará que Orabona destrua essa sua nova coisa? Vamos lá, não é um jogo honesto?

A expressão na face do expositor era difícil de decifrar. Parecia óbvio que ele estivesse pensando rápido e que sobre um emaranhado de emoções conflitantes o triunfo maligno o estava dominando. Sua voz soou embargada, quando respondeu:

- Honesto o bastante! Se você se mantiver firme, aceitarei seu conselho. Sairemos para jantar e depois retornaremos. Trancarei você no cômodo de exibição e irei para casa. Pela manhã, retornarei antes de Orabona – ele chega meia hora antes dos outros – e verei como você está. Mas não o tente, a menos que esteja muito seguro de seu ceticismo. Outros fraquejaram – a oportunidade é sua. E suponho que umas batidas na porta de fora sempre trarão um policial. Você poderá não gostar, depois de algum tempo – e estará no mesmo edifício, mas não no mesmo cômodo que Ele.

Quando atravessaram a porta dos fundos em direção ao pátio sombrio, Rogers levou consigo o pedaço de aniagem com seu repulsivo conteúdo. Próximo ao centro do pátio havia um bueiro, cuja tampa o expositor ergueu em silêncio e com um acento de arrepiante familiaridade. Com invólucro e tudo, o fardo desceu ao oblívio de uma cloaca labiríntica. Jones estremeceu e instintivamente se esquivou ao contato da vampiresca figura ao seu lado, enquanto saíam para a rua.

Num tácito consentimento mútuo, não jantaram juntos, mas concordaram em se encontrar às sete diante do museu.

Jones apanhou um táxi e respirou aliviado depois que cruzou a Ponte Waterloo e sentiu que se aproximava da Strand alegremente iluminada. Satisfez-se com um café frugal e em seguida se recolheu a casa em Portland Place, para tomar um banho e apanhar algumas coisas. Perguntou-se, um tanto improficuamente, o que Rogers estaria fazendo. Tinha ouvido que o homem possuía uma casa vasta e penumbrosa em Walworth Road, repleta de livros obscuros e proibidos, parafernálias ocultas e imagens de cera que preferia não colocar em exposição. Orabona, sabia-se, vivia num setor separado dessa mesma casa.

Às onze, Jones encontrou Rogers à sua espera junto à porta do porão na Southwark Street. Trocaram escassas palavras, mas cada qual parecia lutar com uma tensão ameaçadora. Concordaram em que somente o salão de exibição deveria compor o cenário da vigília, e Rogers não insistiu para que o outro se alojasse na alcova “para adultos” dos supremos horrores. O expositor, após apagar todas as luzes do estúdio, fechou a porta daquela cripta com uma das chaves de seu volumoso molho. Sem sequer um aperto de mãos, atravessou a porta da rua, trancou-a atrás de si e galgou os desgastados degraus que conduziam ao pavimento lá fora. Enquanto o som de suas passadas esmorecia, Jones se deu conta de que a longa e tediosa vigília havia começado.

Mais tarde, na treva absoluta do grande porão arqueadado, Jones amaldiçoou sua própria ingenuidade infantil, que o tinha colocado ali. Durante a primeira meia hora, acendeu e apagou sua lanterna de bolso a intervalos regulares, mas estar sentado agora num dos bancos do expositor, em plena escuridão, tornara-se uma tarefa enervante. A cada vez que a lanterna faiscava, algum objeto mórbido e grotesco aparecia – uma guilhotina, algum inominável monstro híbrido, uma face barbada, repleta de malignidade, ou um corpo com emanações vermelhas escorrendo de uma garganta cortada. Jones sabia que nenhuma realidade sinistra se ligava a essas coisas, mas após a primeira meia hora preferiu não as ver mais.

Por que se dera ao trabalho do provocar aquele maluco ele mal podia dizer. Teria sido muito mais simples deixá-lo entregue a si mesmo ou ter chamado um especialista. Provavelmente, refletiu, influenciara-o o sentimento de empatia que um artista tem por outro. Havia suficiente genialidade em Rogers para torná-lo merecedor de toda oportunidade possível de que alguém o ajudasse a se livrar de sua crescente mania. Qualquer homem que pudesse imaginar e construir as coisas incrivelmente vivas que ele tinha produzido não estaria distante de uma real grandeza. Ele tinha a fantasia de um Sime ou de um Doré reunida ao artesanato minucioso e científico de um Blatschka. Com efeito, ele dera ao mundo do pesadelo aquilo que os Blatschkas, com seus modelos de plantas maravilhosamente acurados, feitos com vidro finamente retorcido e colorido, tinham dado ao mundo da botânica.

A meia-noite as batidas de um relógio distante filtraram-se através da escuridão, e Jones se sentiu animado pela mensagem de um mundo exterior que ainda vivia. A câmara de teto arqueado do museu assemelhava-se a um túmulo – perturbadora em sua extrema solidão. Mesmo um camundongo teria sido uma companhia razoável; e, no entanto, Rogers aventara que – por “certas razões”, conforme dissera – camundongos ou quaisquer insetos jamais se aproximaram do lugar. Era bastante curioso, conquanto parecesse verdade. A imobilidade e o silêncio eram virtualmente totais. Se ao menos alguma coisa produzisse um som! Ele agitou os pés, e os ecos repercutiram na quietude absoluta. Tossiu, mas havia o que quer que fosse de zombeteiro nas reverberações em staccato. Ele não podia, reconheceu, simplesmente conversar consigo mesmo. Isso significaria uma desintegração nervosa. O tempo parecia escoar com uma lentidão anormal e desconcertante. Ele poderia jurar que horas inteiras tinham transcorrido desde que acendera a lanterna pela última vez durante a vigília, porém mal havia batido meia-noite.

Teria desejado que seus sentidos não fossem tão extraordinariamente aguçados. Alguma coisa na quietude e na escuridão parecia tê-los afiado, de modo que respondiam às mais ligeiras excitações com uma nitidez que dificilmente se consideraria normal. Seus ouvidos pareciam, às vezes, captar um débil, evasivo sussurro que não se poderia sem erro identificar como sendo o rumor das ruas esquálidas lá fora; e ele pensou em coisas vagas e irrelevantes, como a música das esferas ou a vida ignota, inacessível, de dimensões alienígenas pressionando contra a nossa. Rogers não raro especulava sobre tais coisas.

Os espectros de luz flutuante sobre seus olhos repletos de treva pareciam inclinados a assumir curiosas simetrias de padrão e movimento. Ele freqüentemente se indagara acerca desses estranhos raios provenientes do insondável abismo que cintila diante de nós na ausência de toda iluminação terrestre, mas nunca conhecera nenhum que se comportasse tal como esses se comportavam. Faltava-lhes a repousante errância das manchas de luz ordinária – como se sugerindo alguma vontade ou propósito além de qualquer concepção terrestre.

Então veio aquela sugestão de estranhos estremecimentos. Nada estava aberto; no entanto, a despeito da geral imobilidade do ar, Jones sentiu que a atmosfera não parecia uniformemente parada. Havia variações intangíveis de pressão – não decididas o suficiente para sugerir o repugnante patear de entidades desconhecidas. Estava anormalmente frio também. Ele não gostou de nada disso. O ar pareceu-lhe salgado, como se se houvesse misturado à salinidade de águas subterrâneas, e havia a vaga impressão de algum odor de inefável mofo. Durante o dia, ele nunca reparara que as figuras de cera tivessem odor. Mesmo agora aquela impressão incerta não correspondia ao cheiro que figuras de cera devessem ter. Assemelhava-se mais ao discreto odor dos espécimes num museu de história natural. Curioso, em vista das declarações de Rogers de que suas figuras não eram de todo artificiais – de fato, tal declaração é que levava a imaginação a conjurar a suspeita olfativa. É preciso que se reaja aos excessos da imaginação – não foram tais coisas que puseram louco o pobre Rogers?

No entanto a extrema solidão do lugar era amedrontadora. Mesmo as badaladas mais distantes pareciam provir de golfos cósmicos. Isso fez com que Jones se lembrasse daquela fotografia insana que Rogers lhe mostrara – a câmara horrendamente entalhada com o trono críptico que o sujeito alegara ser parte de uma ruína de três milhões de anos localizada em ermos temidos e inacessíveis do Ártico. Talvez Rogers tivesse ido ao Alasca, mas aquela foto não seria mais que uma encenação. Não havia como ser de outro modo, com todos aqueles entalhes e aqueles símbolos terríveis. E aquela forma monstruosa, que se supunha ter sido encontrada sobre o trono – que arroubo de mórbida fantasia! Jones se perguntou a que distância realmente estaria da insana obra-prima de cera – provavelmente ela estaria guardada atrás daquela maciça porta com o cadeado, que levava a algum recesso para além da oficina. Mas de nada serviria conjeturar acerca de uma imagem de cera. Não estava aquela mesma sala repleta de tais coisas, algumas delas pouco menos horríveis do que o temível “Ele”? E, para além de um delgado biombo à esquerda, estava a alcova “Para adultos somente”, com seus inomináveis fantasmas de delírio.

A proximidade das inumeráveis formas de cera começou a bulir mais e mais com os nervos de Jones à medida que os minutos avançavam. Ele conhecia o museu bem o bastante para não se sentir livre de suas imagens usuais nem mesmo na escuridão total. Na verdade, a escuridão tinha o efeito de adicionar às imagens lembradas algumas nuanças imaginativas realmente perturbadoras. A guilhotina parecia ranger, e a face barbada de Landru – o carrasco de suas cinqüenta esposas – se contorcia em expressões de monstruosa ameaça. Da garganta cortada de Madame Demers parecia emanar um horrível som borbulhante, enquanto a vítima sem cabeça e pernas de um esquartejador tentava se aproximar mais e mais sobre suas amputações sangrentas. Jones passou a fechar seus olhos na expectativa de que isso pudesse afastar as imagens, mas descobriu que era inútil. Além disso, quando ele fechava os olhos os padrões estranhos e despropositados das manchas de luz se tornavam mais pronunciados e inquietadores.

Então, subitamente, ele começou a tentar reter as imagens que antes tinha se esforçado para banir. Tentou retê-las porque estavam dando lugar a outras mais assustadoras. Contra a vontade, sua memória se pôs a reconstruir as blasfêmias não-humanas que espreitavam pelos cantos mais obscuros, e essas demoníacas formações híbridas se enroscavam e se sacudiam em sua direção como se tentando envolvê-lo num círculo. O negro Tsathoggua se converteu, de uma gárgula semelhante a um sapo, numa linha longa e sinuosa com centenas de pés rudimentares; e um delgado e flexível abutre noturno estendeu suas asas como se para avançar e sufocar o vigilante. Jones segurou-se para não gritar. Reconheceu que estava revertendo aos terrores tradicionais de sua infância e determinou usar sua razão adulta para conter os fantasmas. Ajudou um pouco, percebeu, piscar a luz novamente. Por medonhas que fossem as imagens mostradas, não o eram tanto quanto as que sua fantasia sacava da extrema escuridão.

Mas houve recaídas. Mesmo à luz da lanterna ele não podia deixar de suspeitar que um furtivo e ligeiro tremor se verificava no biombo que escondia a terrível alcova “para adultos, somente”. Sabia o que estava ali atrás e estremecia. A imaginação evocava as formas chocantes do fabuloso Youg-Sothoth – um mero aglomerado de globos iridescentes, mas ainda assim estupendo em sua maligna sugestividade. Não estaria aquela massa amaldiçoada flutuando lentamente em sua direção e se chocando contra a divisória em seu caminho? Uma pequena protuberância na tela à direita sugeria o chifre pontudo de Gnoph-keh, a coisa peluda, mitológica, dos gelos de Greenland, que às vezes caminhava sobre duas pernas, às vezes sobre quatro, e às vezes sobre seis. Para tirar isso da cabeça, Jones se arrojou num ímpeto contra a alcova infernal, com a lanterna acesa à sua frente. Certamente, nenhum de seus receios se comprovou. No entanto não estariam os longos tentáculos faciais do grande Cthulhu movendo-se realmente, de um modo lento e insidioso? Sabia que eram flexíveis, mas não havia notado que o sopro de ar causado pelo seu próprio avanço fosse suficiente para colocá-los em movimento.

Retornando a seu assento do lado de fora da alcova, fechou os olhos e deixou que as manchas simétricas de luz fizessem seu estrago. O relógio distante deu uma única batida. Teria sido apenas uma? Acendeu a lanterna sobre seu relógio e viu que era precisamente uma hora. Seria penoso, decerto, esperar até de manhã. Rogers só chegaria por volta das oito horas, antes mesmo de Orabona. Haveria luz lá fora, no porão principal, bem antes que isso ocorresse, mas nenhum raio penetraria ali. Todas as janelas neste porão tinham sido bloqueadas pelas três mais pequenas que davam para o pátio. Uma péssima vigília, ao que tudo indicava.

Seus ouvidos captavam maiores alucinações agora – pois ele poderia jurar que estava ouvindo passadas furtivas e inexoráveis na oficina, para além da porta trancada. Não havia que ficar pensando no horror chamado “Ele”, que Rogers se privara de exibir. A coisa era uma contaminação – havia enlouquecido o seu criador e agora mesmo a sua imagem suscitava atemorizantes fantasias. Jazia, obviamente, por detrás daquela pesada porta de madeira com o cadeado. As passadas seriam, certamente, pura imaginação.

Então julgou ter ouvido a chave girar na porta do estúdio. Acendendo a lanterna, nada mais viu que o vetusto portal de seis folhas em sua posição costumeira. Outra vez apelou para a treva e fechou seus olhos, mas veio em seguida uma alucinante ilusão de rangido – não a guilhotina, desta vez, mas o lento e furtivo abrir-se da porta do estúdio. Ele não gritaria. Se gritasse, estaria perdido. Ouviu-se uma espécie de patear ou de remexer, e estava avançando lentamente em direção a ele. Precisava manter o controle sobre si mesmo. Não fizera o mesmo quando o inominável em forma de cérebro tentou acuá-lo? A movimentação parecia mais próxima, e sua resolução lhe faltava. Ele não gritou, mas apenas gaguejou uma intimação:

- Quem está aí? Quem é você? O que você quer?

Não houve resposta, porém a agitação prosseguia. Jones não soube o que mais temia fazer – se acender a lanterna ou se ficar quieto no escuro, enquanto a coisa avançava sobre ele. Esta coisa era diferente – sentiu no fundo – dos outros terrores do anoitecer. Seus dedos e sua garganta funcionavam espasmodicamente. O silêncio era impossível, e o suspense da escuridão extrema começava a se revelar a mais intolerável das condições. Outra vez gritou, histericamente: “Alto! Quem está aí?” – enquanto acendia o facho esclarecedor. Então, paralisado pelo que viu, deixou cair a lanterna e gritou – não uma só, mas muitas vezes.

Vinha contorcendo-se em sua direção a forma gigantesca e blasfema de algo que não era inteiramente macaco nem inteiramente um inseto. Sua carapaça pendia solta sobre o corpo, e o seu rudimento rugoso de cabeça – olhos mortiços – balançava de um lado para o outro como a de um bêbado. Suas patas dianteiras estavam estendidas, com as garras abertas, e todo o seu corpo exalava malignidade, a despeito de sua completa ausência de expressão. Após os gritos e a volta da escuridão, a criatura saltou e, num instante, manteve Jones preso ao chão. Não houve luta, porque o vigilante desmaiou.

A inconsciência de Jones não deve ter durado mais que um instante, pois a coisa inominável o estava arrastando através da escuridão quando ele começou a se recobrar. O que o despertou foram os sons que a coisa emitia – ou, antes, a voz com que os produzia. Era uma voz humana e algo familiar. Somente uma criatura viva poderia estar por trás daqueles acentos ásperos e febris que entoavam cantos a algum horror desconhecido.

 - Iä! Iä! – uivava. – Estou chegando, ó Rhan-Tegoth, chegando com o alimento. Tu esperaste muito e te alimentaste mal, mas agora terás o que foi prometido. E ainda mais, pois que, em vez de Orabona, terás alguém de alto nível que duvidou de ti. Poderás espremê-lo e sugá-lo, com todas as suas dúvidas, e te fortalecerás assim. E após, entre os homens, ele há de ser mostrado como um monumento à tua glória. Rhan-Tegoth, infinito e invencível, sou teu escravo e teu sumo sacerdote. Estás faminto, e te alimentarei. Li o sinal e te conduzi. Com sangue te nutrirei, e hás de me nutrir com poder. Iä! Shub-Niggurath! O Bode com os Mil Jovens!

Num instante, todos os terrores da noite abandonaram Jones como um manto que se despe. Ele se tornou de novo senhor de sua mente, pois reconhecia o perigo muito terreno e material com que tinha de lidar. Não era nenhum monstro de fábula, mas um louco perigoso. Era Rogers, vestindo alguma fantasia de pesadelo produzida por seu próprio engenho insano, e prestes a realizar algum apavorante sacrifício ao deus-demônio que ele mesmo moldara na cera. Claramente, ele devia ter penetrado na oficina pela porta do pátio, envergado seu disfarce e então avançado para sua vítima acuada e alquebrada pelo medo. Sua força era prodigiosa, e se ele devia ser impedido, cumpria agir rapidamente. Contando com a confiança do louco em sua inconsciência, Jones decidiu surpreendê-lo, aproveitando-se de um relaxamento do abraço. O contato com alguma mobília mostrou-lhe que estava cruzando o cômodo em direção às trevas do estúdio.

Com a força que nos concede o medo mortal, Jones deu um súbito arranco, saindo da posição meio deitada na qual estava sendo arrastado. Por um instante, viu-se livre das mãos do maníaco atônito, e num outro instante um golpe de sorte na escuridão colocou suas próprias mãos na goela oculta do perseguidor. Simultaneamente, Rogers o agarrou de novo, e sem maiores avisos estavam os dois atracados numa luta desesperada de vida e morte. O preparo atlético de Jones, sem sombra de dúvida, era sua única salvação; pois seu louco adversário, livre de qualquer inibição com respeito a jogo limpo, decência ou mesmo autopreservação, era uma máquina de selvagem destruição tão formidável quanto qualquer lobo ou pantera.

Urros guturais pontuavam às vezes a horrível peleja na treva. Sangue jorrava, vestes rasgavam-se, e Jones por fim sentiu de fato, entre os dedos, a garganta do maníaco, despida de sua máscara espectral. Não disse palavra alguma, mas aplicou cada fragmento de sua energia na defesa de sua vida. Rogers chutava, esmurrava, cabeceava, mordia, arranhava e se debatia – e no entanto encontrava forças para emitir algumas frases ocasionais. A maior parte do que dizia aflorava num jargão repleto de referências ao “Ele” ou “Rhan-Tegoth”, e para os nervos desgastados de Jones era como se os gritos ecoassem rosnados e latidos demoníacos a uma infinita distância. Por último, estavam rolando no chão, revirando bancos ou se chocando contra as paredes e as fundações de tijolos da fornalha central. Próximo ao fim, Jones não estava certo de poder se salvar, mas o acaso interveio a seu favor. Um golpe de seu joelho contra o peito de Rogers produziu um relaxamento geral, e no momento seguinte ele reconheceu que tinha vencido.

Embora mal pudesse agüentar-se, Jones se levantou e apalpou as paredes à procura do interruptor – pois sua lanterna sumira juntamente com grande parte de suas roupas. Enquanto avançava, arrastou consigo seu oponente inerte, temendo um ataque súbito quando o mesmo se recobrasse. Encontrando a caixa dos interruptores, remexeu-a até que deparou com o acionador direito. Então, quando a caótica desordem do estúdio explodiu numa súbita cintilação, pôs-se a amarrar Rogers com cordas e correias que facilmente descobriu à sua volta. O disfarce do sujeito

-          ou o que restara dele – parecia feito de uma espécie estranhíssima de couro. Por alguma razão, a carne de Jones se retraiu ao tocá-lo; e parecia exalar-se daquilo um odor ferruginoso e alienígena. Por baixo, entre as roupas normais, estava o molho de chaves de Rogers, que o exaltado vencedor arrebatou como seu passaporte final para a liberdade. As cortinas sobre as pequenas janelas de correr estavam todas cuidadosamente cerradas, e ele as deixou ficar assim.

 Lavando o sangue da batalha com uma bacia conveniente, Jones vestiu as mais ordinárias -sempre ruins – roupas que conseguiu encontrar nos cabides do vestuário. Experimentando a porta para o pátio, descobriu que a tranca não exigia uma chave pelo lado de dentro. No entanto ele conservou consigo o molho de chaves, de modo a poder voltar com ajuda – pois, obviamente, o melhor a fazer era chamar um alienista. Não havia telefone no museu, mas não seria demorado encontrar um restaurante noturno ou uma farmácia que dispusesse de um. Tinha quase aberto a porta, quando uma torrente de repulsivas imprecações, proveniente do cômodo, lhe informou que Rogers – cujos ferimentos mais visíveis se restringiam a um sulco longo e profundo na face esquerda – recobrara a consciência.

-          Tolo! Filhote de Noth-Yidik e eflúvio de K’thun! Filho dos cães que uivam no maelstrom de Azathoth! Você teria sido sagrado e imortal, e agora está traindo a Ele e ao Seu sacerdote! Mas cuidado – pois Ele tem fome! Teria sido Orabona – aquele maldito cão traiçoeiro, sempre pronto a me trair a mim e a Ele – mas darei a honra a você. Agora, ambos precisamos ter cuidado, pois Ele não é gentil com seu sacerdote.

“Iä! Iä! A vingança está próxima! Sabe que você teria se tornado imortal? Olhe para a fornalha! Há um fogo pronto a ser aceso, e existe cera no caldeirão. Eu teria feito com você o que fiz com outras criaturas outrora viventes. Eh! Você, que declarou serem apenas cera todas as minhas efígies, teria se tornado uma efígie de cera também! A fornalha estava preparada! Depois que Ele se houvesse nutrido, e você tivesse ficado como aquele cachorro que lhe mostrei, eu teria tornado imortais os seus restos compactados e perfurados! A cera seria o bastante. Não viu como sou um grande artista? Cera sobre cada poro – cera sobre cada polegada de você – Iä! Iä! E para todo o sempre o mundo teria olhado para a sua carcassa mofina e se espantado de que eu pudesse imaginar e produzir semelhante coisa! Eh! e Orabona teria sido o próximo, e outros depois dele -e assim cresceria minha família de cera!

“Cão – ainda acha que fiz todas as efígies? Por que não dizer: preservei? Reconhece agora os estranhos lugares pelos quais andei e as coisas estranhas que trouxe comigo. Covarde – você nunca teria peito para encarar o rastejante dimensional cuja pele eu vesti para assustá-lo – a mera visão de sua forma viva, ou sequer um pensamento dela, o mataria de medo num instante! Iä! Iä! Ele aguarda faminto pelo sangue que é vida!”

Rogers, encostado à parede, oscilava para a frente e para trás em suas amarras.

-          Ouça, Jones, se eu o deixar ir, você me deixará ir também? É preciso que Seu sumo sacerdote cuide d’Ele. Orabona será suficiente para mantê-Lo vivo. Podia ter sido você, mas você rejeitou a honra. Não o importunarei mais. Deixe-me ir, e compartilharei com você o poder que Ele me trará. Iä! Iä! Grande é Rhan-Tegoth! Deixe-me ir! Deixe-me ir! Ele está morrendo de fome lá embaixo, atrás daquela porta, e se Ele morrer os Antigos nunca mais retornarão. Eh! Eh! Deixe- me ir!

Jones apenas balançou a cabeça, embora a enormidade das idéias do expositor o revoltasse. Rogers, olhando agora alucinadamente para a porta de madeira com o cadeado, batia mais e mais com a cabeça contra a parede de tijolos e esmurrava com os cotovelos bem atados. Jones temeu que ele se machucasse, e avançou para amarrá-lo um pouco mais firmemente a algum objeto estacionário. Encolhendo-se, Rogers se desviou dele e começou a emitir uma série de uivos frenéticos, cuja inumanidade extrema e monstruosa era estarrecedora e cujo volume agudo era quase inacreditável. Parecia impossível que uma garganta humana produzisse ruídos tão altos e cortantes, e Jones sentiu que se continuassem não haveria necessidade de pedir ajuda por telefone. Não demoraria para que um policial viesse investigar, mesmo admitindo-se que não havia vizinhos para ouvir entre os armazéns daquele distrito deserto.

Aquela criatura toda amarrada, que tinha começado a se contorcer ao longo do piso, agora alcançava a porta com o cadeado e batia trovejantemente com a cabeça contra ela. Jones receou amarrá-lo ainda mais e desejou que a luta o tivesse deixado exausto o suficiente. Essa seqüência violenta dava-lhe horrivelmente nos nervos, e ele começou a sentir o retorno das indescritíveis inquietações que havia sentido no escuro. Tudo o que presenciara acerca de Rogers e do museu era tão infernalmente mórbido e sugestivo de negras visões de além vida! Era inquietador pensar na obra-prima em cera, de genialidade anormal, que naquele momento deveria estar à espreita, quase à mão, na escuridão que havia do outro lado da pesada porta com o cadeado.

Então, alguma coisa aconteceu que trouxe mais um arrepio à espinha de Jones e fez com que cada pêlo de seu corpo – mesmo os suaves tufos nos dorsos das mãos – se arrepiasse com um vago medo que não permitia classificação. Rogers, subitamente, parara de gritar e de bater com a cabeça contra a maciça porta de madeira e lutava para se assentar, a cabeça pendida para um lado como se ouvindo alguma coisa com atenção. Inopinadamente, um sorriso de diabólico triunfo se estampou em seu rosto, e ele começou a falar de um modo ininteligível outra vez -agora num sussurro grave que contrastava estranhamente como seu anterior uivo estentórico.

-          Escute, tolo! Escute bem! Ele me ouviu e está vindo. Pode ouvi-Lo chapinhar para fora de seu tanque lá no fundo da eclusa? Eu a fiz bem funda, porque não havia nada melhor para Ele. Trata-se de um anfíbio, sabe? – você viu as guelras na fotografia. Chegou à terra vindo da plúmbea Yuggoth, onde as cidades jazem no fundo de um mar aquecido. Não pode ficar de pé ali – alto demais -, tem de se sentar ou de se agachar. Dê-me as chaves – precisamos deixá-Lo sair e nos ajoelharmos diante dele. Então sairemos à procura de um cão ou de um gato – ou quem sabe de algum bêbado – para lhe dar o sustento de que Ele precisa!

Não foi tanto o que o doido dissera, mas o modo como o dissera, que atingiu Jones tão profundamente. A confiança e a sinceridade extremas, insanas, que havia naquele sussurro louco eram lamentavelmente contagiantes. A imaginação, tremendo estímulo, acharia uma ameaça ativa naquela demoníaca figura de cera que espreitava oculta para além das grossas tábuas. Mirando a porta com inusitado fascínio, Jones reparou que ela exibia várias rachaduras, conquanto nenhum sinal de tratamento violento era visível daquele lado. Ele se perguntou que dimensões teria o cômodo ou despensa por trás dela e de que modo estaria colocada a figura de cera. A idéia do maníaco de um tanque com uma eclusa era tão conjeturável quanto todas as suas outras fabulações.

Logo, num instante terrível, Jones não teve forças sequer para respirar. A correia de couro que segurava para dar o último laço em Rogers escorregou de suas mãos, e um espasmo de tremor convulsionou-o da cabeça aos pés. Devia saber que o lugar o levaria à loucura, como fizera com Rogers – e agora estava louco. Estava louco, pois agora sofria alucinações mais esquisitas do que quaisquer outras que o tinham assaltado naquela noite. O louco convocava-o a ouvir o chapinhar de um monstro mítico no tanque que estava para além da porta – e agora, Deus poderoso, ele o ouvia!

Rogers percebeu o espasmo de horror que se estampou no rosto de Jones e o transformou numa máscara de expectativa e de medo. Casquinou:

-          Afinal, tolo, acredita! Afinal você sabe! Ouve-O, e Ele vem! Dê-me as chaves, tolo -precisamos fazer a reverência e Lhe servir!

Mas Jones estava longe de prestar atenção em quaisquer palavras humanas, loucas ou sãs. Uma paralisia fóbica o colocou imóvel e semi-inconsciente, imagens selvagens precipitando-se de modo fantasmagórico em sua imaginação. Ouviu-se um chapinhar. Ouviu-se um patear ou um bulício, como o de grandes patas úmidas contra uma superfície sólida. Alguma coisa se aproximava. Suas narinas foram invadidas por um fedor, proveniente das frinchas daquela porta de pesadelo, ao mesmo tempo semelhante e distinto daquele que emana das jaulas dos mamíferos nos jardins zoológicos do Regent’s Park.

Ele não sabia mais se Rogers estava falando ou não. Tudo o que fosse real se desvanecera, e ele era uma estátua ob sedada por sonhos e alucinações tão antinaturais que se tornavam quase objetivas e independentes dele. Pensou ter ouvido um farejar ou um grunhir proveniente do abismo para além da porta; quando um súbito ruído, como o de um latido ou de uma trombeta, assaltou seus ouvidos, não teve certeza se teria vindo do maníaco amarrado, cuja imagem dançava diante de sua vista abalada. A fotografia daquela maldita coisa oculta de cera insistia em flutuar através de sua consciência. Tal coisa não tinha o direito de existir. Não o havia deixado louco?

Mesmo enquanto refletia, uma nova evidência de loucura lhe ocorreu. Alguma coisa, pensou, estava bulindo com a tranca da pesada porta com o cadeado. Estava batendo e arranhando e empurrando as grandes tábuas. Ouvia-se um martelar contra a madeira resistente, que se tornou mais e mais pronunciado. A fedentina era horrível. E agora o assalto contra aquela porta pelo lado de dentro se tornava uma saraivada maligna, determinada, como os ribombos num campo de batalha. Houve um ominoso estrondo – um despedaçamento – uma onda de fedor – uma tábua que caía – uma pata negra terminando numa pinça de caranguejo…

- Socorro! Socorro! Deus me ajude!… Aaaaaaa!.

Com grande esforço Jones consegue, hoje em dia, recordar-se de que sua paralisia fóbica explodiu na liberação de um súbito frenesi de fuga automática. Ora, ele provavelmente viveu uma daquelas fugas loucas e selvagens dos mais loucos pesadelos, pois parece que atravessou num ímpeto a cripta em desordem, de um único salto, escancarou a porta de saída, que se fechou e se trancou às suas costas com um estampido, disparou escada acima, saltando de três em três degraus, e cruzou alucinada e desorientadamente o pátio calçado de pedras em direção às ruas esquálidas de Southwark.

Aqui a memória pára. Jones não sabe como chegou a casa, e não há evidências de que tenha apanhado um táxi. Provavelmente, venceu todo o trajeto guiado por um instinto cego – através da Ponte Waterloo, ao longo do Strand e de Charing Cross, até as alturas de Haymarket e Regent Street e até sua própria vizinhança. Ele ainda usava a inusitada barafunda das roupas do museu, quando se tornou consciente o bastante para chamar o médico.

Uma semana mais tarde, os especialistas em nervos permitiram que ele deixasse o leito e saísse ao ar livre.

Mas ele não contou muita coisa aos especialistas. Sobre toda a sua experiência pendia um véu de loucura e pesadelo, e ele concluiu que o silêncio era a melhor opção. Quando se levantou, perscrutou atentamente todos os papéis que se acumularam desde aquela noite medonha, mas não encontrou nenhuma referência a nada de estranho no museu. O quanto, afinal, de tudo aquilo tinha sido realidade? Onde terminava a realidade e começava o sonho mórbido? Teria sua mente se despedaçado naquela escura câmara de exibição, e teria sido toda a luta com Rogers apenas uma fantasmagoria da febre? Teria ajudado em sua recuperação se ele conseguisse assentar alguns desses pontos enlouquecedores. Ele devia ter visto aquela maldita fotografia da imagem de cera denominada “Ele”, pois cérebro algum senão o de Rogers seria capaz de conceber semelhante blasfêmia.

Duas semanas transcorreram antes que ele tivesse coragem de retornar a Southwark Street. Partiu durante uma manhã, quando o maior volume de atividade sã estava ocorrendo naqueles antigos arredores de lojas e armazéns. A placa do museu ainda estava lá, e quando se aproximou viu que o lugar ainda estava aberto. O porteiro fez uma aceno de aprazível reconhecimento, enquanto ele cobrava coragem para entrar, e na câmara arqueada lá embaixo um assistente tocou animadamente no quepe. Talvez tudo tivesse sido apenas um sonho. Ousaria bater na porta do estúdio e procurar por Rogers?

Então Orabona avançou para cumprimentá-lo. Sua negra cara lambida tinha algo de sardônico, mas Jones sentiu que não era inamistosa. O outro falou, com uma ponta de sotaque:

-          Bom dia, Sr. Jones. Faz tempo que não o vemos por aqui. Deseja ver o Sr. Rogers? Lamento, mas ele não se encontra. Foi chamado para algum negócio na América e teve de ir. Sim, foi bem repentino. Estou no comando agora, aqui e na casa. Procuro manter o alto padrão do Sr. Rogers -até que ele volte.

O estrangeiro sorriu – talvez apenas por afabilidade. Jones mal sabia o que responder, mas se esforçou para balbuciar algumas perguntas sobre o dia seguinte à sua última visita. Orabona pareceu interessado nas perguntas, e teve o maior cuidado ao responder.

-          Oh, sim, Sr. Jones, o vinte e oito do mês passado. Lembro-me dele por muitas razões. Pela manhã – antes que o Sr. Rogers chegasse, você compreende? – encontrei o estúdio numa verdadeira barafunda. Havia muita – limpeza – por fazer. O trabalho da noite anterior durara até tarde, veja você. Um importante espécime novo, dado o seu processo secundário de cozimento. Assumi todo o controle quando cheguei.

“Era um espécime difícil de preparar – mas, naturalmente, o Sr. Rogers havia me ensinado o bastante. Ele é, como se sabe, um grande artista. Quando chegou, ajudou-me a completar o espécime – ajudou-me bem materialmente, lhe asseguro – mas saiu logo, sem sequer cumprimentar os homens. Como lhe disse, foi chamado de repente. Havia importantes reações químicas envolvidas. Faziam muito barulho – de fato, algumas pessoas lá fora imaginam ter ouvido vários tiros de pistola – uma idéia bem peculiar!

“Quanto ao novo espécime – é um assunto lamentável. Trata-se de uma grande obra-prima, desenhada e executada, você compreende, pelo Sr. Rogers. Ele verá o que aconteceu quando retornar.”

Outra vez Orabona sorriu.

A polícia, você sabe. Nós o colocamos em exibição há uma semana, e aconteceram dois ou três desmaios. Um pobre coitado teve um ataque epilético diante dele. Compreende, um pouquinho – mais forte – que o resto. Maior, por causa de uma coisa. Naturalmente, estava na alcova ‘para adultos’. No dia seguinte, dois homens da Scotland Yard deram uma olhada e disseram que era mórbido demais para ser exibido. Disseram que tínhamos de removê-lo. Foi um grande embaraço – tamanha obra-prima de arte – mas eu não me senti com autoridade para recorrer à justiça na ausência do Sr. Rogers. Ele detestaria semelhante publicidade, com a polícia envolvida mas quando retornar – quando retornar…

 Por uma ou outra razão, Jones sentiu uma onda crescente de desconforto e repulsa. Mas Orabona prosseguia:

-          Você é um conhecedor, Sr. Jones. Estou certo de que não violo nenhuma lei oferecendo-lhe uma demonstração particular. Pode ser que – de acordo, evidentemente, com a vontade do Sr. Rogers – venhamos a destruir o espécime algum dia – mas seria um crime.

Jones teve um forte ímpeto de recusar ver a coisa e fugir precipitadamente, mas Orabona já o conduzia pelo braço com um entusiasmo de artista. A alcova “adulta”, apinhada de inomináveis horrores, não tinha visitantes. Num canto distante, um largo nicho fora coberto por uma cortina, e em direção a ele é que avançou o sorridente auxiliar.

Você deve saber, Sr. Jones, que o título deste espécime é “O Sacrifício a Rhan-Tegoth”. Jones ficou violentamente abalado, mas Orabona não pareceu notar.

O deus colossal e informe é uma personagem de certas lendas obscuras que o Sr. Rogers tinha estudado. Tudo bobagem, com certeza, como você tantas vezes asseverou ao Sr. Rogers. Supõe-se que tenha vindo do espaço sideral e que tenha vivido no Ártico há três milhões de anos. Tratava seus sacrifícios de modo bastante peculiar e horrível, como verá. O Sr. Rogers o realizou com muita vivacidade e imaginação – mesmo quanto à face da vítima.

Em meio a violentos tremores, Jones se agarrou ao corrimão de bronze em frente ao nicho velado. Esteve mesmo para erguer a mão e impedir Orabona quando viu a cortina deslizar, mas um conflituoso impulso o deteve. O estrangeiro sorria triunfalmente.

-          Contemple!

Jones sentiu-se girar, mesmo agarrado ao corrimão.

-          Deus! – Deus do céu!

Com bons dez pés de altura, a despeito de sua postura agachada, rastejante, expressiva de infinita malignidade cósmica, uma monstruosidade de horror inacreditável aparecia saindo de um trono ciclópico de marfim coberto de relevos grotescos. No par central de suas seis pernas, segurava uma coisa amassada, esmagada, distorcida e exangue, perfurada por um milhão de picadelas e em alguns pontos corroída por algum ácido pungente. Somente a macilenta cabeça da vítima, pendendo invertida num dos lados, dava mostras de representar qualquer coisa de humana.

O monstro em si dispensaria qualquer título, para quem tivesse visto certa fotografia infernal. Aquela desgraçada imagem tinha sido mais que fiel e no entanto não podia comportar todo o horror que havia no gigantesco objeto real. O torso globular – a sugestão de cabeça algo semelhante a uma bolha – a tromba de um pé de comprimento – as guelras salientes – a monstruosa penugem das ventosas em forma de áspide – os seis membros sinuosos com suas patas negras e pinças de caranguejo – Deus! a familiaridade da pata negra terminando numa pinça de caranguejo!…

O sorriso de Orabona era simplesmente hediondo. Jones engasgou e fitou aquela exibição medonha com um fascínio crescente que o perturbou e o deixou perplexo. Que irrevelado horror o estava prendendo e forçando a olhar por mais um pouco e a procurar por detalhes? Aquilo tinha enlouquecido Rogers… Rogers, o artista supremo… disse que não eram artificiais…

Então ele localizou a coisa que o atraía. Era a cabeça pendente da macilenta vítima de cera e alguma coisa que ela implicava. Essa cabeça não era inteiramente destituída de uma face, e aquela face era familiar. Parecia-se com a face enlouquecida do pobre Rogers. Jones examinou melhor, mal sabendo por que o fazia. Não era natural que um egotista moldasse suas próprias feições em sua obra-prima? Haveria alguma coisa mais que a visão subconsciente tivesse capturado e ultrapassado em infinito terror?

A cera da face ressequida tinha sido manuseada com inigualável destreza. Aquelas picadas -quão perfeitamente reproduziam a miríade de feridas de algum modo infligidas àquele pobre cão! Mas havia algo mais. Na bochecha esquerda podia-se vislumbrar uma irregularidade que parecia transcender o esquema geral – como se o escultor tivesse procurado cobrir um defeito de sua primeira modelagem. Quanto mais Jones olhava para ela, mais ela o terrificava misteriosamente – e então, de súbito, ele se lembrou de uma circunstância que levou seu horror ao ápice. Aquela noite de abominação – a luta – o louco amarrado – e o corte longo e profundo na face esquerda do verdadeiro Rogers vivo…

Jones, abandonando o desesperado apoio do corrimão, tombou num desmaio total. Orabona continuava a sorrir.


fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2013/09/h-p-lovecraft-horror-no-museu.html