sábado, 31 de dezembro de 2016

O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Parte 1)

Leon Kaufman não era mais um forasteiro naquela cidade. O Palácio das Delícias, como a havia chamado nos dias de sua inocência. Mas isso era quando morava em Atlanta, e Nova York era ainda uma espécie de terra prometida, onde qualquer coisa e tudo eram possíveis.

Agora Kaufman já morava há três meses e meio na sua cidade de sonho, e o Palácio das Delícias não parecia tão delicioso assim. Teria realmente passado apenas uma estação do ano desde que descera na Estação Rodoviária Central e olhara para a Rua 42, na direção do cruzamento com a Broadway? Tão pouco tempo para perder tantas ilusões acalentadas?
Agora, só em pensar na sua ingenuidade, sentia-se embaraçado. Constrangido, lembrava de ter dito em voz alta: “Nova York, eu te amo”. Amor? Nunca! Tinha sido, se tanto, um entusiasmo passageiro. E agora, depois de três meses de vida com o objeto de sua adoração, passando dias e noites dentro dela, a cidade havia perdido toda a aura de perfeição. Nova York era apenas uma cidade.

Ele a vira acordar de manhã, como uma vagabunda, tirar homens assassinados do meio dos dentes, e suicidas de seu cabelo emaranhado. Ele a havia visto tarde da noite, suas ruas sombrias desavergonhadamente cortejando a depravação. Ele a havia observado à tarde, indolente e feia, indiferente as atrocidades cometidas a cada hora nas suas ruelas abafadas.
Não era um Palácio de Delícias. Engendrava morte, não o prazer. Todas as pessoas que conhecia haviam conhecido a violência; era um fato da vida. Era quase chique conhecer alguém que tivera morte violenta. Era prova de estar vivendo naquela cidade. Mas Kaufman tinha amado Nova York de longe durante quase vinte anos. Esse caso de amor fora planejado durante a maior parte de sua vida adulta. Portanto, não era fácil livrar-se da paixão, como se nunca a tivesse sentido. Em certos momentos, muito cedo, antes de começarem as sereias da polícia, ou no fim do dia, Manhattan era ainda um milagre. Por esses momentos, e em lembrança de seus sonhos, Kaufman concedia-lhe ainda o benefício da dúvida, mesmo quando o comportamento da cidade nada tinha de refinado.

Ela não facilitava esse perdão. Nos seus poucos meses em Nova York, Kaufman já tinha visto suas ruas inundadas de sangue. Na verdade, não eram tanto as ruas, mas os túneis abaixo delas. “Carnificina no Metrô” era a frase do mês. Na semana anterior, uns três assassinatos haviam sido perpetrados. Os corpos foram descobertos num dos vagões da linha Avenida das Américas, retalhados e parcialmente eviscerados, como se um funcionário eficiente do matadouro tivesse sido interrompido no seu trabalho. A matança tinha sido tão profissional que a polícia estava interrogando todos os indivíduos fichados nos seus arquivos que, de um modo ou outro, estivessem ligados ao negócio de carnes. Os tendais localizados à beira-mar estavam sob vigilância, os ahatedourns foram revistados à procura de pistas. As autoridades prometiam uma prisão iminente, mas nenhuma fora feita ainda. Aquele trio recente de cadáveres não era o primeiro a ser encontrado nesse estado; no dia da chegada de Kaufman à cidade, o Times havia publicado uma reportagem que ainda era tema de conversa de todas as mórbidas secretárias comerciais.

Noticiara-se que um visitante alemão, perdido no metrô tarde da noite, havia encontrado um corpo no trem. A vítima era uma mulher de trinta anos, atraente e de corpo bem-feito, residente no Brooklin. Estava completamente nua. Haviam-lhe levado toda a roupa, todas as jóias. Até os brincos. Mais estranho do que o fato de lhe desnudarem o corpo era o modo cuidadoso e sistemático pelo qual as roupas tinham sido dobradas e colocadas numa sacola de plástico, no banco, ao lado do corpo. Não se tratava de um assassino irracional. Era uma mente bastante organizada, um lunático com forte senso de ordem. Além disso e mais estranho ainda do que o desnudamento cuidadoso era o ultraje que então fora perpetrado. Os repórteres afirmavam, embora a polícia não confirmasse isso, que o corpo fora meticulosamente depilado. Todo o cabelo, todos os pêlos foram removidos, da cabeça, do sexo, das axilas, raspados totalmente. Até as sobrancelhas e as pestanas haviam sido arrancadas. Finalmente, aquela peça de carne, completamente nua, foi dependurada, pelos pés numa das alças presas ao teto do carro e um balde de plástico negro, forrado com uma sacola também de plástico negro, foi colocado sob o corpo, para aparar o sangue que pingava dos ferimentos.

Naquele estado, nu, sem pêlos, dependurado e praticamente sem sangue, o corpo de Loretta Dyer foi encontrado. Era revoltante, meticuloso e profundamente perturbador. Não havia sinal de estupro nem de tortura. A mulher fora rápida e eficientemente despachada, como se fosse um pedaço de carne. E o açougueiro estava solto ainda. As autoridades municipais, com sua alta sabedoria, determinaram que a imprensa não devia ter acesso ao caso. Propalava-se que o homem que havia encontrado o corpo estava sob custódia protetora em Nova Jersey, longe da curiosidade dos jornalistas. Mas esse despistamento não teve sucesso. Algum policial ganancioso passou detalhes importantes para um repórter do Times, e todo mundo em Nova York ficou logo sabendo da terrível história. Era o tópico de conversação em todas as lanchonetes e em todos os bares e, é claro, no próprio metrô.

Mas Loretta Dyer foi apenas a primeira. Agora, mais três corpos haviam sido encontrados nas mesmas circunstâncias, porém dessa vez o trabalho fora evidentemente interrompido. Nem todos os corpos estavam com pêlos e cabelos raspados, e as jugulares não tinham sido
cortadas para a sangria. Havia outra diferença, mais significativa: não foi um turista que os encontrou, mas um repórter do New York Times. Kaufman leu a reportagem na primeira página do jornal. Não tinha interesse mórbido pela história, ao contrário do homem ao seu lado, no balcão da lanchonete. Sentiu apenas uma leve repugnância, que o fez empurrar o prato com ovos cozidos para longe dele. Era simplesmente outra prova da decadência da
cidade. Não sentia prazer com aquela doença. Contudo, era um ser humano e não podia ignorar os detalhes sangrentos descritos na reportagem. O artigo não usava linguagem sensacionalista, mas a clareza simples do estilo tornava mais impressionante a descrição. Kaufman não pôde deixar de refletir também sobre o homem que perpetrava aquelas atrocidades. Haveria um só psicopata à solta, ou vários, inspirados a copiar o crime original?
Talvez fosse apenas o começo do horror. Talvez outros crimes iguais viessem a ser cometidos até que o assassino, entusiasmado ou exausto, se descuidasse e fosse apanhado. Até então, a cidade, a cidade adorada de Kaufman, ia viver num estado que mediava entre a histeria e o êxtase.