sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Na Colina (Final)


Contemplando o significado da inscrição, mais uma vez ele ficou imóvel, enquanto o pedido macabro de desculpas começava a perturbá-lo levemente. Ou a região tinha sido um centro de guerra, tendo  anteriormente estabelecido outro clã, ou talvez os habitantes originários da colina compartilharam os mitos e superstições com seus descendentes modernos na aldeia logo abaixo.

No começo, o barulho não tinha sido inteiramente filtrado em sua consciência. Foi só quando repetida em um ritmo irregular que sua mente reconheceu sua natureza. Ainda de frente para a parede e de costas para o salão da igreja, o frio que tinha experimentado na rua voltou a se arrastar por seus braços. Seu corpo tremia por causa da temperatura que estava abaixando em ritmo alarmante, seu hálito podendo ser vistos em pequenas nuvens nervosas à frente de seu rosto. Os pelos de John se arrepiaram com o som próximo de um pé arrastando uma pedra no chão e lentamente seguido por outro. Mas quem estaria em tal lugar além dele? Era óbvio não ser nenhum dos moradores, não com suas superstições, advertências e presságios sobre a encosta.

Os passos pareciam mais perto, e com sua confiança diminuindo, os pensamentos de John estavam focados apenas em fugir. Enquanto o som aumentava, ameaçadoramente próximo, estava claro que teria que enfrentar seja lá quem fosse para chegar até a porta.Não havia mais o que fazer, teve que empurrar para o lado o medo que tomava conta dele. Lentamente, ele se virou para ver quem estava atrás dele Por um momento ele achou que enfrentaria um dos rostos severos que tivera imaginando, mas o salão estava desprovido de vida, vazio, mas o som de passos na pedra fria, como lixa sobre a pele, ainda preenchiam o ar.

John arfou quando viu algo se mexendo no canto de seu olho. Virando-se rapidamente para a porta escurecida que levava até o subsolo, a cabeça de uma figura indecifrável se mexia conforme seu corpo se erguia a cada passo vacilante. O terror correu por suas veias, a ponto que sua racionalidade derreteu de tal forma que só o puro instinto prevalecia. Ao que desatou a correr, pulando da plataforma deixando o altar e a inscrição para trás, ele sentiu um medo profundo romper em suas entranhas. Tropeçando quando aterrissou, o impacto desalojou mais detritos do teto, fazendo com que pedaços grandes de pedra se despedaçassem  no chão da igreja, uma não certou a cabeça de John por poucos centímetros.

A saída estava próxima e seus pensamentos fervilhavam enquanto tropeçava por pilhas de escombros e resíduos esquecidos, a pele morta da construção caía sem remorso. Por um momento sentiu-se cercado, pressionado por um homem de batina, pregando sobre o pecado e o mal antigo enquanto a congregação miserável e diminutiva permanecia amontoada, com medo do que estava por perto.

Com os pés se arrastando entre a sujeira e poeira do chão, a claridade mental de John retornava e começou a escalar uma grande pilha de madeira quebrada com pedras - a saída para a segurança do outro lado - a curiosidade acalmou seus nervos por um segundo. O temor que sentia por dentro o dizia para continuar, ir para longe daquele lugar, mas a necessidade de saber era implacável:  Ele precisava ver. Respirando fundo, se virou cautelosamente em direção do altar, vagarosamente apontando a luz de seu celular à escada escura. O ar no salão estava ficando mais gelado, o respirar apavorado de John claramente visível sob a luz fraca. A escuridão parecia enevoar sua visão, mesmo assim, o que conseguiu decifrar era inconfundível. Um figura alta estava de pé na frente da portinha, mas uma profunda sensação que toda a humanidade dele tivesse sido pervertida e torturada emanava deste. O homem e a criatura silenciosamente trocaram olhares por um longo tempo. Em seguida uma sequencia rouca de silabas saíram da boca do ser, uma língua a muito tempo esquecida e, enquanto sua definição precisa iludia o entendimento de John, o desdém com que falava não fazia.

A figura na porta se moveu para frente intimidando com seus movimentos sombrios, John gritou em horror, agarrando-se a esmo nos escombros na tentativa de chegar ao topo e, em seguida, fazer seu caminho até a porta. Agora ele não ligava mais em fazer silêncio, seus movimentos desesperados ecoando pelo salão, muitas pedras começavam a cair do teto novamente. Quando chegou no topo do monte, olhou para cima só para ver uma pedra maior que sua própria estatura vindo em sua direção. Pulando por sua vida, ele caiu do outro lado. Enquanto rolou pelo chão, uma dor lancinante fisgou-lhe no lado do corpo. Batendo contra o chão de pedra, o impacto deixou-o atordoado alguns minutos. Cambaleando enquanto se levantava ele olhou para baixo e recolheu-se em horror. Um grande pedaço de madeira tinha entrado vários centímetros na altura de suas costelas. O sangue jorrava da ferida quando quase que instintivamente puxou o pedaço de madeira, ela relando contra suas entranhas antes de finalmente ser removida.

Ele deixou escapar um grito de angustia, e ao mesmo tempo se virou para trás por ter ouvido outro barulho. A dor em seu lado era agonizante, mas a visão que estava tendo era muito pior do que qualquer sensação. A figura na porta se arrastava em sua própria barriga, rastejando-se em uma velocidade impossível sobre os escombros em direção à John. O corpo era enegrecido, o resto coberto por um manto branco, deslizando com facilidade sobre a superfície irregular.

Tropeçando em estado de choque, John estava paralisado de medo. Em seguida, a realidade o tomou; a saída estava perto. Mancando em direção à porta, ele espremeu seu corpo contra a abertura indo em direção à luz. A porta pressionou e cutucou a ferida na costela, fazendo a dor se espalhar por todo seu abdômen. Com um ultimo empurrão ele gritou, a força do momento fazendo-o cair no gramado do lado de fora. Olhando para cima através da abertura olhou a figura sepultada com sua cara sarcástica do lado de dentro, seu braço esticado, cuspindo desprezivelmente e grunhindo ensurdecedoramente para o por do sol.

John não perdeu tempo olhando a criatura; levantou cambaleantemente mais uma vez, sua mão agora estava encharcada de sangue estancando o sangue na ferida enorme nas costelas. Saindo daquele lugar o mais rápido que pode, deixando o terreno da igreja pra trás, ele tinha certeza que podia ouvir vozes vindo de dentro  enquanto fugia - os gritos e protestos do clero e da congregação que a muito tempo tinham se ido, zombando, magoados e desprezando-o.

Na pressa, tinha perdido o controle de sua direção, pois não era familiarizado com aquele ambiente. No aperto do pânico, ele mancou o mais rápido que pode, mas a desorientação o levou e, antes de saber como ou porque, viu-se rodeado por um labirinto de lápides quebradas e derrubadas.

Tonto e com falta de ar, ele não ligava mais para aonde estava, contanto que conseguisse deixar a igreja e seu "funcionário" para trás. Depois de recuperar o fôlego, começou a avaliar o velho cemitério; algumas grandes e iminentes lápides enquanto as outras estavam derrubadas e arruinadas. Então, como se sofrendo os efeitos de um veneno desconhecido, o mundo começou a girar ao se redor e tentando respirar, as pedras assumiram formas sinistras e ameaçadoras, elevando-se, bloqueando a luz, olhando com raiva para ele de cima. Agora não era um cemitério onde ele se encontrava e sim um enorme anel de enormes pedras deformadas. Eles tinham enfrentado muitas tempestades - anciões e esquecidos - muito antes do primeiro tijolo fosse colocado naquela igreja adulterada.

Sentindo-se obrigado a, de alguma forma, se aproximar de um deles, estendeu a mão, tocando a superfície coberta de musgo. Flashes de um passado escondido agora invadia sua mente, enquanto sentia-se dominado por uma fraqueza. Sua visão nublou, o mundo girava e uma náusea repentina cobriu seus sentidos, um que era tão forte que o obrigou cair de joelhos, e embora tenha lutado bravamente contra, em segundos ele desmoronou no chão, sua ferida pulsando a cada batida de seu coração. Deitado em suas costas olhando para cima, o céu parecia pulsar e tudo em sua volta parecia destorcido, como se ele estivesse separado do mundo. John perdeu os sentidos.

***


Ele acordou com o silêncio da terra. Tufos de grama quebrada tocavam seu rosto enquanto o vento soprava em várias direções. O céu estava negro, enquanto nada vivo se mexia. John não sabia quanto tempo tinha estado inconsciente, mas o cobertor de estrelas acima não deixavam duvidas que havia sido por algumas horas. O enjoo continuava, mesmo que não tão forte, mas a ferida em seu lado ainda vazava sangue.  Ficando de pé, ficou claro que seu corpo ainda estava no efeito de seja lá o que tinha naquela colina, mas de certa forma ele já estava se acostumando com isso; pelo menos a um ponto que conseguisse ganhar postura para achar um jeito de fugir. 

A sorte ficou do seu lado enquanto a lua estava presente logo acima de sua cabeça, mesmo que só uma fina parte em forma crescente. Ela o dava luz o suficiente para avaliar o estranho mundo e as formas que o rodeava. Ele não tinha certeza se estava aonde tinha desmaiado, pois lembrava vividamente das lápides, que não estavam mais ali. De pé, com a mão em cima da ferida tentando estancar o sangue, realizou algo assustador. John achou difícil de converter em simples palavras o que era, mas descreveu como "As leis da natureza mudaram". Nada parecia fazer sentido, por um momento não sabia quem ele mesmo era, porque estava lá, e o que estava fazendo-o se sentir tão mal. Ele parecia ter mantido o conhecimento da montanha e memórias sobre a igreja, mas seus pensamentos estavam embaralhados e desconexos. Momentos repentinos de identidade eram substituídos pela confusão. Mas, independentemente da aflição, um continuava; seu instinto insistia que precisava sair daquele lugar imediatamente. Mas neste frágil estado mental, não conseguia distinguir qual caminho levava para a vila e qual caminho o levaria em direção do o cume, para o que ou quem estivesse lá. A intoxicação sensorial foi uma experiência diferente de qualquer outra - o mundo desconhecido.

Um cheiro horrível preencheu o ar. Se era seu próprio vômito ou o enjoo brincando com seus sentidos, não sabia, mas havia algo a mais naquele fedor. Um cheiro de chorume misturado com o inquietante odor de cabelo queimado. Começou a ficar tão forte que os olhos de John começaram a arder, o que ajudou a desorientá-lo. Apesar de seus olhos estarem cheios de lágrimas e o mundo parecia totalmente desconexo, agora ele sentia algo que só pode descrever como uma "presença". O fedor mofado cresceu e John tossiu. A resposta ao barulho foi diferente, e mesmo que acreditasse que conhecer a mente de alguém era impossível - algo se aproximou com muita malicia e ódio junto de seus companheiros.

O medo se tornou um objeto passageiro enquanto andava em silêncio entre árvores sombrias e por entre o capim selvagem esperando encontrar uma saída. Cambaleando atrapalhado pela escuridão, a dor em sua ferida e  os pensamentos de morrer na colina, nunca mais ver os que amava ficaram cada vez mais evidentes. Por um momento achou que iria desmaiar novamente, mas enquanto o enjoo se intensificava, agora era acompanhado pelo som de grama morta e flora seca sendo pressionadas, como se algo se arrastasse no mato perto dali. A visão de John estava tão limitada que não conseguia distinguir qual caminha levava pra frente ou para trás, e em breves momentos de clareza, sentia repulsa ao pensar em voltar à igreja, as pedras ou as lápides - inseguro de se elas eram ou não de verdades. Estava totalmente perdido e, algo que chamava a horrível colina de casa, se aproximava.

Ficou Imóvel.

Mas nem silêncio ou a escuridão podiam acobertá-lo. Nenhum campo de esquecimento poderia fornecer obscuridade para se esconder de uma perversidade tão velha quanto a terra, que agora perseguia um homem que antes riu na cara da superstição e do mito. O ar ficou mais denso e os finos riscos de luz que vinham da lua iam diminuindo, como se estivesse sendo sugado para as profundidades ta terra. Em seguida, nada. O som da grama sendo quebrada e pressionada parou, o lugar parecendo ser insuportavelmente desprovido de som. Esgotado mentalmente, John não tinha mais esperanças de sair dali. A coisa estava por perto, seu respirar podia ser sentido no ar; sujo, rançoso, algo que estivera vivo tempo demais, mas mesmo assim não tinha perdido o desejo de causar dor e sofrimento. Em seguida, movimento. Folhas mortas estalaram de baixo de seu peso, o mato alto que parecia ser tão impenetrável, tão dominante, agora se dobrava e quebrava a cada passo do ser. Agora o único pensamento que John tinha era de se esconder. Vagarosamente, respirando mais baixo, ofegando silenciosamente, afundou na grama; aterrorizado.

A presença estava mais perto e, na escuridão, ele achou que as vezes conseguia enxergar uma vaga silhueta de algo que andava a esmo, fora do alcance. O circulava lentamente por ali, chegando perto e depois se afastando de novo, como se procurasse meticulosamente pelo chão. Então, finalmente, o som de seus passos vagos foram se distanciando bastante, e depois pararam totalmente. John deixou escapar um suspiro de alívio.

Então uma mão tocou seu rosto.

A sobrevivência tomou conta de si e, com um grito de terror absoluto, ele rolou para o lado. Uma dor lancinante percorreu por seu corpo, pois sua movimentação e o próprio peso fez com que sua ferida fosse pressionada contra o solo. Um rugido baixo escapou de seja lá que monstruosidade estava de pé a sua frente e então, sem saber para que lado fugir, John se motivou por um novo impulso; ficando de pé em um pulo, correu desjeitosamente em uma direção aleatória, esperando que, além de suas esperanças, fosse levado embora daquela loucura. Aquele pesadelo.

Ele correu entre o mato e árvores no breu da noite. Um fedor denso de podre e cabelo queimado cobria tudo, provocando ondas de vômito enquanto corria. Por fim, ele sabia onde estava, um lugar que tinha rezado para nunca mais ir. A igreja apareceu em sua vista, impetuosa e destorcida à sua frente. Algo se precipitou entre as árvores atrás e logo estaria em cima dele. Pelo menos agora ele sabia em que sentido correr, indo em direção ao caminho que tinha subido mais cedo naquele mesmo dia, uma trilha desgastada que o levaria para a tão prezada segurança. Mas o terreno parecia artificial e desconhecido. A própria forma de "construção" parecia ter sido forjada por alguém com más intenções. Ele tinha que continuar, para se livrar de quem o perseguia. O caminho tinha que ser naquela direção!

Então, finalmente ele rompeu em uma clareira. Seu coração afundou dentro do peito. Lá estava de novo a igreja, mas de certa forma, parecia diferente. Na noite ela parecia possuir uma forma mais sinistra e bizarra do que na luz do dia. Por um momento John imaginou a estrutura não sendo feita de pedra ou concreto, e sim de videiras, barro e madeira; retorcidos em direção ao céu.

O farfalhar de folhas podia ser ouvido de perto enquanto tropeçava, ofegante por ar. A dor em sua ferida agora era quase insuportável, cada passo acompanhado por uma sensação interna de rasgamento. Forçado por seu perseguidor a ter que ver a igreja de novo, John se deslocou o melhor que pode, cambaleando e mancando, fraco e exausto, entrou em uma espessa rede de arbustos e espinheiros. Suas roupas ficaram presas enquanto os galhos pontudos arranhavam seu rosto e braços. Não adiantava, ele não conseguiria fugir. Olhando por cima do ombro, alguém estava claramente atravessando os arbustos apenas alguns metros dali.

O medo corria pelas veias de John enquanto o seu perseguidor o alcançava. Deixando escapar um grito de dor e angustia, a coisa entre os ramos pareceu parar por um momento, observou-o pleiteando por sua vida, suas mãos cortadas e rasgadas por espinhos. John se agarrou no matagal a frente tentando escapar e, em seguida, para arrepia-lo até os ossos, a figura atrás dele olhou e deixou escapar um gemido angustiante - algo entre uma risada e um suspiro de satisfação. A coisa começou a se mover em grande velocidade, rompendo por entre os espinho com facilidade, se aproximando rapidamente.

Com um berro de dor e descrença, John finalmente conseguiu se libertar do aperto dos espinhos, mas o desespero ainda o assombrava. Lá estava  novamente a igreja, quase zombeteira, torcida e destorcida de um jeito que nenhum ser humano conseguiria desenvolver. Vacilante, com a pouca força que ainda tinha, ele passou pela igreja mais uma vez enquanto seu agressor saia por entre as árvores, se apressando em sua direção. John aumentou seu ritmo o máximo que pode, o que não era muito. O céu estava aberto, e líquido era derramado sobre a igreja, que logo se esparramara no terreno, ficando encharcado e alagado.

A força de John diminuiu quando caiu de joelhos, admitindo estar derrotado. Então, a salvação. De longe, uma luz brilhava. Uma que irradiou e rompeu entre a mata quase impenetrável. Algo para incentivá-lo a prosseguir. A ter esperança. Um fluxo a seguir, uma luz de fora da terrível colina. Com seu perseguidor se aproximando, arrastando seu corpo entre o gramado e a escuridão, uma última onda de energia despertou John de seu terrível destino. A visão da luz e da vida reacendeu um pequeno resquício de esperança que ainda restava. Ele urrou em aflição enquanto se levantava, a chuva caindo sobre sua cabeça, encharcando-o até os ossos. Mas isso não importava.  Tudo que importava era a luz, e a segurança que ela prometia. Mancando o mais rápido que podia,  ele entrou na mata entre os cipós e galhos da floresta, o medo sobrepondo qualquer dor que sentia enquanto os espinhos cortavam sua pele.

No entanto ele continuava, e a luz começou a ficar cada a vez mais forte; vibrante e encorajadora. Estava claro agora que ele estava indo ladeira abaixo, pois a dinâmica de sua trajetória o fazia tropeçar e cair várias vezes. Também fazia a velocidade dele aumentar consideravelmente. Memórias que não eram dele começaram a aparecer na sua cabeça novamente, pensamentos de raiva e ódio preenchiam sua visão; a imagem da igreja nunca vazia, mas ainda assim desprovida de vida - o padre com as mãos erguidas, inclinando-se por cima das cabeças da congregação.

A desorientação estava o preenchendo, e o cheiro de cabelo queimado se espalhou pelos arredores novamente. Apesar de confuso, podia ouvir os passos de seu perseguidor em velocidade crescente, no entanto, parecia mais agitado do que antes. Deveria estar com raiva, ou até mesmo frustrado. John sentiu-se enjoado pelo próprio pânico, o sangue escorrendo de sua ferida desenfreadamente. Assim que a luz estava mais próxima; com a promessa da redenção, segurança e a fuga da escuridão, ele voou ladeira abaixo quando pisou em falso na lama e grama molhada, caindo em direção ao solo. Dor, cansaço e desesperança reinaram soberanamente em seu corpo já golpeado e ferido, que agora havia pousado em cima de um grande tronco de árvore tombado.

Os passos se aproximavam, e enquanto os ouvia, John pensava como sua vida acabaria por aquele que chamava a encosta e lar.

"Vamos, filho. Levante-se! Levante-se!" uma voz gritou da escuridão, quase abafada pelo som de quebra de galhos e folhas velhas que se aproximava.

O mundo parecia deformado, mas quando quase estava por perder sua consciência uma vez mais, a claridade retornou e John percebeu onde estava. Seu corpo não tinha caído contra uma árvore tombada, e sim contra o portão daquele lugar terrível.

Algo estava próximo. Aquela coisa que estava o perseguindo pelo escuro, agora estava a apenas alguns metros de distância.

"Mexa-se, ele está quase em cima de você!" um grito soou do escuro, e John reconheceu como a familiar voz de Dale.

Com uma última ação, a última gota de vida que restava nele, John R. abriu o portão, caindo de rosto no chão em uma poça na estrada.

***

Eu estava sentando paralisado; as palavras fluindo de John, as vezes junto com uma gagueira persistente, mas ainda assim com uma convicção e veracidade que achei difícil de ignorar, mesmo com meu ceticismo. Este homem acreditava piamente que tudo aquilo que me dissera era verdade. Dale, aparentemente, tinha ido o procurar, contra a vontade de todos os outros moradores. Ele tinha, a muito tempo atrás, perdido um filho e não queria que mais ninguém sucumbisse para a malevolência que aparentemente que vivia na encosta. O senhorio, sendo um velho amigo do fazendeiro, eventualmente concordou em os dois irem de carro até o pé da colina, esperando que John seguiria a luz dos faróis e conseguisse ser o primeiro a sair de lá vivo. Entretanto, não importava o quanto eles estavam dispostos a ajudar, nunca iriam se quer tocar no portão nem cruzar a limiar do morro. John tinha que o fazer sozinho, e ele o fez, quando o perseguidor estava quase o alcançando. 

Me lembro de soltar um suspiro de alivio assim que ele terminou de contar sua história e tomou seu último gole de vinho de frente para a fogueira. Houve um momento de silêncio entre nós, e percebi que o bar inteiro estava banhando em reticências ansiosas. Uma que era quase palpável, como se os que estivessem lá quisessem falar, mas não tinham coragem para o fazer.

Finalmente falei, tentando soar o mais reconfortante o possível: "É uma história esplêndida, John, mas é apenas uma história. Tenho certeza que há uma explicação racional para tudo isso."

Ele abaixou a cabeça, olhando para o chão.

"Se é só uma história, então por que eu não posso ir embora?" ele disse, me olhando com uma expressão meio amedrontada e meio desesperada.

"O que você quer dizer por não poder ir embora?"

"Estou aqui faz três meses!" ele gritou, "As vezes eu desejo que Dale apenas tivesse me deixado por lá."

"John," Eu disse, me inclinando e pousando minha mão em seu ombro, " Você pode ir embora quando quiser".

Mas eu podia ver uma expressão de descrença em seu rosto. Ele tinha sido consumido por seja lá quais mitos e superstições que os moradores dali tinham enfiado-lhe goela baixo. Cheguei a conclusão que sua mente estava corrompida. Claro que eu sentia que o senhorio e os outros tinham apenas boas intenções, mas eu estava certo que uma explicação convencional poderia vir a curar sua mente aflita.

"Estou indo para Glasgow amanhã." Eu disse alegremente. "Porque não vem comigo? O ônibus estará aqui pela tarde e nós podemos viajar juntos. Mas... Claro, eu tinha esquecido, você está com seu carro. Por favor, não achei que eu estava pescando uma carona."

Ri, mas John só meu olhava tristemente, e então respondeu: "  Meu carro é um caso perdido, destruído."

"Sério? Espero que não seja tão ruim assim... O que aconteceu?"

"Levei vários dias para me recuperar de minhas experiências na colina", disse arrasado, "mas quando melhorei, arrumei minhas malas, agradeci a Dale e ao senhorio e então dirigi para fora do vilarejo. Depois de alguns kilometros uma chuva forte começou a cair. A visibilidade estava terrível, mas eu queria ir embora logo. Perdi o controle do carro e bati em uma árvore. Sobrevivi, mas o carro está perdido."

"Bem, acidentes acontecem. Pelo menos você está bem. O que acha de outra bebida?" Disse, me levantando. John segurou meu braço com força.

"Não foi um acidente. Havia outra coisa na estrada. Eu o vi lá. Um homem... Eu acho. Pelo menos parecia com um homem. Eu virei o volante para desviar dele."

"Foi uma coisa boa. A última coisa que você gostaria era de matar acidentalmente um morador local" Minhas piadas mais uma vez não apaziguaram suas frustrações.

Eu me sentei de volta enquanto ele me contava sua situação. Depois do acidente com o carro, que foi rebocado de volta para a pousada por Dale, John tentou tudo que pode para sair dali. Toda vez que tentava usar o ônibus local, acontecia um problema. O veiculo quebrava ou talvez um deslizamento acontecia, bloqueando a entrada da vila - John até afirmou que era por isso que eu tivera de passar a noite na vila aquela noite, para pegar o ônibus no dia seguinte.

O homem era implacável. Por três meses que estivera como convidado no "O Lorde de Dungorth", e não importava o quanto tentasse, ele não conseguia atravessar os limites da vila. Várias vezes ele tentou ir andando até a cidade mais próxima, mas em cada ocasião era forçado a voltar por causa de uma tempestade perigosa e cruel que chegava sem aviso prévio. Ele tentara telefonar pedindo ajuda, mas seu celular nunca tinha sinal e enquanto usava o algum telefone local só ouvia estática.  O mesmo acontecia se alguém tentava fazer uma ligação no nome dele.

Mesmo que eu não conseguisse explicar cada um daqueles acontecimentos, eu estava certo que uma série de eventos racionais e ocasionais poderiam ser responsáveis por cada um.  Era loucura que alguém obviamente tão inteligente e articulado estivesse acreditando em tal insensatez. Eu, genuinamente, sentia simpatia por aquele homem.

"Você é vítima de uma profecia auto-realizada", eu disse, confiante.

"O que você quer dizer com isso?" John perguntou.

"Eu já trabalhei em muitas vilas como esta. Você vem para uma velha cidade do país com um terreno assombrado. É como se fosse outro mundo distinto da vida moderna de Londres. Então você é abastecido com paranoia. Um mito, em que os moradores acreditam em uma parte de terra amaldiçoada. Absorvendo tudo isso, você tem o azar de bater o carro em uma árvore e, antes que perceba, começa a acreditar na coisa toda. Talvez você tenha até imaginado a pessoa na estrada. Talvez até mesmo todo o conflito."

"E a colina?" perguntou,  obviamente intrigado com qualquer possibilidade de fuga que pudesse ser eficaz.

 "Provavelmente um efeito placebo de todas as histórias que você ouviu. Isso ou, quem sabe, talvez você tenha comido algo adulterado ou algum vírus que tenha feito você alucinar a coisa toda. Talvez até exista um doido morando na igreja."

Estava óbvio que ele não estava convencido, mas eu sentia que era meu dever levar aquela pobre alma para fora daquela vila, de volta para Glasgow, onde ele poderia dar um jeito de ir para casa. Eu já presenciara o estrago que crenças não fundamentadas podiam causar em pessoas e comunidades, e sempre fiquei intimidado por isso. Eu só queria ajudar.

"Amanhã nós pegaremos o ônibus juntos e te pagarei uma bebida em Glasgow."

Ele não replicou muito, só acenou com a cabeça em um relutante acordo.

***

No dia seguinte despertei pela manhã com um objetivo único. Enquanto eu tinha que ir para casa e terminar meus afazeres, o ônibus não partiria até o fim da tarde, o que me deixava com bastante tempo à persuadir John de ir comigo a um lugar um tanto dramático: A colina. Eu sabia que se eu voltasse sem nenhuma dessas estranhas experiências, talvez ele esqueceria toda essa superstição louca que os moradores tinhas implantado nele, e iria embora de ônibus comigo. Tenho de confessar que também estava totalmente intrigado pela ideia do lugar e, mesmo que eu não tivesse dúvidas que as experiências de John  fossem ilusões, senti que poderia tirar um artigo dali, possivelmente até uma história. Como escritor, essas oportunidades raramente eram dadas de bandeja. 

Antes de ir, falei com ele e deixei claras minhas intenções. Ele suplicou que eu não fosse, que seu destino não precisava ser meu. Mas depois de muito protesto ele aceitou o fato de que eu não seria dissuadido e, relutantemente, concordou que se eu voltasse sem nenhum fato sobrenatural, paranormal ou qualquer outro incidente, ele iria embora comigo para Glasgow.

Depois de me dar as direções certas, - as quais eu sabia que não conseguiria com nenhum morador - fiz meu caminho até a suposta encosta maldita. Tenho de admitir que a primeira vez que a vi, parecia um tanto... esquisita. Fora de lugar. Mas supus que isso fosse apenas um efeito subconsciente do conto de John. O ambiente parecia ser exatamente como ele descrevera. Pelo menos essa parte era verdadeira. A estrada estava bloqueada por lixo e entulho, e acabei por encontrar o portão no pé da montanha. Havia até uma mancha de sangue, certamente fazendo o fim da história ser mais convencível.  O pensamento de que algum maníaco pudesse estar realmente lá em cima me fez recuar um pouco, mas ele provavelmente teria se mudado depois de ser confrontado por Dale e proprietário da terra. De qualquer modo, John, bastante ferido e abalado conseguira escapar, então me sentia bastante confiante.

Não senti nada fora do comum quando ultrapassei o limiar entre as terras, e mesmo que as árvores caídas e a grama morta deixasse o ambiente meio decadente, fique surpreso por quão inocente e banal parecia ser. Depois de subir o caminho que claramente havia sendo usado a anos inúmeras vezes, cheguei no local que fazia lembrar a descrição de John.

E lá estava. Obscurecida do mundo por conta de uma parede de folhagens, madeira podre e grama: A igreja.  Eu fiquei surpreso pois pensava que tal construção teria sido certamente parte das alucinações de John e admito que comecei a me sentir um pouco nervoso por sua existência, e hesitei por um momento antes de continuar. Fico envergonhado de confessar que, se a área não estivesse iluminada pela luz do dia, eu teria considerado voltar. Mas eu não voltei.  

A igreja era fascinante, e no mínimo, queria ver se era como John havia dito, com o altar intacto. Não era difícil olhar lá dentro,  embora me estremecesse um pouco lembrando da descrição da porta parcialmente bloqueada por destroço, mas esta estava bem aberta e sem obstáculos, e essa diferença fez com que eu parasse mais uma vez. Entretanto, lá estava eu, no limiar, espiando. Era exatamente como ele havia descrito; o chão estava coberto de destroços do telhado, o altar logo mais a frente, uma inscrição - a qual eu não tinha mais dúvida ser real, pois esta escrito realmente como John tinha dito - e uma porta liberando para o subsolo, um destino desconhecido.

Você tem que entender que nunca passou pela minha cabeça que algo sobrenatural realmente morava lá, essa ideia era até cômica; mas eu começava a questionar minha segurança. Um ermitão ou um louco recluso morando de baixo de uma igreja antiga não eram imagens ou pensamentos que me enchiam de confiança.

"Olá? Tem alguém aí?" Gritei, minha voz ecoando entre as vigas do teto.

Sem resposta, me repreendi por ser tão paranoico e dei um passo à frente. Cuidadosamente andando entre os entulhos, notei a um pouco sangue em um pedaço madeira quebrado que assumi ser o de John. Então um pensamento clareou minha mente: talvez a madeira estivesse contaminada de certa forma, e entrando pelo ferimento, em contato com o sangue de John, causou todas as alucinações, pelo menos as que aconteceram depois. Isso explicaria a desorientação.

O altar estava onde ele havia dito que estaria. Percebendo que eu precisaria de uma prova  de que estivera ali para botá-lo de volta nos eixos,  peguei meu celular e comecei a tirar fotos do interior da igreja. A cada flash o salão se iluminava, e enquanto isso minha mente se rastejava nas descrições de John sobre o padre fervoroso e a congregação amedrontada sob a proteção da igreja - mas se protegendo de que?

Me virando em direção a porta que levava ao subsolo da igreja, senti meu coração acelerar só de olhar o lance de escada de pedra, mas eu era obrigado a ir, mesmo que não por intenções inteiramente generosas. Sim, eu queria mostras a John que não existia nada lá em baixo, e que suas crenças que o amarravam sem amarras na vila eram totalmente sem fundamento; mas eu também estava curioso em relação ao que jazia lá embaixo.  Porque essa igreja tinha um andar subterrâneo? Seria uma catatumba? A curiosidade me envolveu e minha boca se encheu d'água pela possibilidade de publicar um artigo descrevendo minha descoberta arqueológica desconhecida, talvez com uma relíquia importante e valiosa; talvez até duas.

Enquanto me aproximava da porta, podia sentir o ar gelado vindo lá de baixo. Usando a luz de meu celular, acalmei meus nervoso que começavam a me irritar, aproximando. Um lance de escada estreito deslizava para o chão do andar abaixo. As paredes eram de um cinza escurecido, e pareciam ter sido feitas e esculpidas com muito menos cuidado do que o resto da igreja. Gritei mais uma vez, mas ninguém respondeu e assumi de prontidão que o lugar estava abandonado. Enquanto descia, me surpreendi por quão comprida a escada era de verdade, e quando cheguei ao final, conclui que estava a, pelo menos, 15 metros abaixo da igreja. Pra mim, era muito estranho que um andar ficasse tão abaixo da terra e me perguntei o propósito disso - porque teriam os arquitetos, construtores ou seguidores da igreja escavado tão fundo?

No último degrau, respirei fundo e iluminei a porta que tinha ficado longe lá em cima. Depois, a luz azulada do meu celular iluminou tudo em volta. O que vi me deixou extremamente perturbado; um grande salão, com o chão cheio de trapos, pedras, e ossos humanos. Não consegui distinguir quantos corpos tinham sido deixados lá para apodrecer, pois eram demais. O are era muito gelado, e me senti congelado até a alma, não só pelas pedras frias que me cercavam, mas pelo sentimento de tristeza que cobria tudo.  Era quase como se eu pudesse ver as pessoas encolhidas, passando seus últimos momentos escondidos do sol. A primeira impressão que tive, é que eles tinham morrido lá, apesar de eu não saber porque eu estava tão convencido disso.

Tirando algumas fotos, entrei no que somente podia descrever como... um túmulo gigante. Fui cuidadoso para não mexer nos ossos, mas fico envergonhado em dizer que senti alguns quebrando debaixo de meus pés. Para esquerda liderava até outra porta que levava até outra câmara, e por mais que não quisesse perturbar a tumba mais do que já havia perturbado, me sentia responsável de saber toda a história. Isso era, o que mais havia lá em baixo.

Acima da porta havia um anjo de pedra, esculpido a nível artístico, colocando-o em desacordo com a sala cheia de ossos. Mas aquele rosto infantil vestia um sorriso largo. Não de felicidade ou jovialidade, mas de zombaria e satisfação sadomasoquista. Apenas de olhá-lo fiquei com um sentimento de asco, então rapidamente entrei no outro compartimento para fugir de seu olhar.

Era um quarto grande, muito maior do que o anterior. Pude dizer de cara que algo de grande importância para aqueles que tinham construído a igreja ficara ali. As paredes eram adornadas com lindos símbolos esculpidos, alguns cristãos, mas muitos de natureza que eu não conhecia. No centro da sala jazia um bloco de pedra maciça de 1 metro de diâmetro. Havia um grande buraco em seu lado. Na pedra estava a seguinte descrição:

"Aqui jaz o pai. Amado por alguns, odiado por muitos."

Enquanto eu refletia a respeito do epitáfio, espiei pelo buraco. O túmulo estava vazio, mas fiquei feliz de ter visto-o antes de entrar no quarto, ou poderia ter tropeçado e tomado um belo tombo. Ficar preso lá em baixo com uma perna quebrada não era algo que eu desejaria pra ninguém. A sujeira da sala era totalmente negra, parecendo que ali fora um depósito de carvão, e a margem do buraco estava cercado de uma pilha de sujeira. Presumi que ladrões de túmulo ou talvez aqueles que "odiavam" o homem tinham roubado seu corpo há muito tempo.

O ar do locar estava começando a me afetar intensamente. Cada inalada de ar era irregular e gelada, e o desconforto era tanto que decidi que já havia visto o suficiente. Enquanto tirando algumas fotos para documentar a tumba antes de ir, o flash da câmera do celular mostrou algo em foco nítido no chão. Coberto em terra estava um livro que se sobressaia do chão. Gentilmente tirando a poeira de cima dele com a mão, cuidadosamente tirei do chão, colocando o livro em cima da tumba no meio da sala.

A encadernação era antiga, descamando de leve quando passei minha mão por cima. A capa era vermelha escura, o qual não conseguia identificar o material que tinha sido feito, falava de tempos antigos e histórias perdidas ainda importantes. No fundo eu sabia que um item desses devia ser removido dali com cuidado e estudado por especialistas, mas como escritor, minha paixão por histórias me obrigou a ver do que se tratava. Abrindo-o, fiquei maravilhado. Era uma crônica. Relatos escritos a mão da história da igreja, sua congregação e a colina em si. Um pedaço de um povo esquecido.

Estava escrito em um tom confuso, linguisticamente falando, sendo que as palavras eram uma mistura do antigo Inglês Escocês e pedaços de um língua desconhecida por mim, uma que assumi ser Celta ou Galês. Entretanto, as passagens em Escocês eu conseguia ler tranquilamente. O que segue é uma memória solta do que estava escrito lá:

***


No século 15 um grupo de refugiados vieram à essa área procurando um lugar que pudessem chamar de casa. Os vales - ou planícies, como são conhecidos na escócia - eram inabitadas na época, assim como uma estranha colina que era dominante na paisagem. O povo era de um lugar chamado Dungorth, e tinham escapado  do proprietário das terras que comandava aquela região; fugindo de suas perseguições, pois era um governador brutal e impiedoso que punia todos que não seguiam suas crenças. 

Em geral, não passavam da casa das centenas, e enquanto os mais velhos queriam apenas se estabelecer nos vales, um sacerdote importante entre eles alegava que para abençoar a terras, e para assegurar que nenhum mal cairia sobre a comunidade, a colina devia ser estabelecida primeiro - um farol de santidade lançando uma sombra de proteção em todos abaixo. Enquanto alguns suspeitavam da fascinação do homem com o lugar, ele era conhecido por sua bondade e por ser alguém cujo o julgamento era confiável. Desanimados, os mais velhos começaram a seguir seu exemplo, como na época era típico das pessoas serem tementes a Deus. Lá, naquele morro isolado e sinistro, construíram um pequeno povoado, mas quase que imediatamente alguns colonos caíram em doença. Uma doença que não tinha explicação e que levava a uma loucura febril. 

O padre culpou algumas pedras altas que salpicavam a encosta, restos de - para ele, pelo menos - de uma religião antiga e herege. Foi decidido, por sua supervisão, que o povo devia construir uma igreja. Com a presença de algo sagrado na terra, pensava-se que seja lá o que residia anteriormente na colina, seria desenraizada.

Estavam errados.

Apesar dos esforços a doença só se tornou pior, e muitos começaram a desconfiar que o próprio padre estava em aliança com as forças abomináveis. Alguns dos anciãos levantaram-se contra ele, mas sob ordens do padre, os membros da congregação de sua igreja executaram todos aqueles que se rebelaram. Temendo por suas vidas, muitos colonos fugiram durante a noite, acompanhando outros anciões para outras terras. A maioria conseguiu sair da colina, mas alguns voltaram apavorados, dizendo terem sidos perseguidos por uma figura sobrenatural pela floresta, e foram incapaz de fugir. Para salvar suas vidas, eles comprometeram a comunhão eterna com o padre e sua igreja.

Dizendo receber visões do próprio todo poderoso, o homem santo assegurou aos aldeões que, se seguissem precisamente suas instruções, estariam a salvo. Todas as noites se amontoavam na igreja enquanto o padre vomitava suas visões e condenações, praguejando ódio à aqueles que haviam o deixado. Ficou claro para alguns que ele havia enlouquecido, mas até então o homem havia formado um conclave rigoroso, brutalmente fiel, de seguidores que pendiam sobre cada palavra que saia de sua boca, tornando toda e qualquer rebelião violenta, sangrenta e incerta.

Muitos falavam de sonhos sem formas, cegos pela escuridão, e várias famílias foram encontradas em suas casas, sufocados no meio da noite. O padre culpou aqueles que tinham escapado e contou histórias de como esses eram a fonte da escuridão que perseguia seu povo, os amaldiçoando por um final desesperado. Amargura e raiva se espalhou pela comunidade e vários aldeões foram selecionados para descer a colina e trazer de volta os anciões que seriam julgados e sacrificado, se necessário. Mas ninguém conseguia sair dali. Não importa o quanto tentassem, a igreja estava lá, não importava em que direção andassem, pra cima do para baixo, voltariam para onde haviam começado, confusos e desorientados.

A doença se espalhou, e os vigias da aldeia, um a um, foram encontrados estrangulados e multilados nas ruas, com testemunhas clamando ter visto uma estranha entidade rondando durante a noite. Em pânico, ficaram sem opção a não ser se apoiar em sua religião por salvação, na esperança que a igreja os protegeria. Todos se amontoaram juntos lá dentro, apavorados com o que estava saindo das sombras durante a noite.

Nessa parte, a escrita mudou marcantemente, ficando bastante rasurada, fervorosa, e mais pronunciada. O próprio padre tinha tomado o livro do cronista da aldeia, pois tinha considerado sua história insatisfatória. Seguiram várias páginas, rasuras em um Inglês emaranhado que mais parecia Latim, e um número de linguagens indescritíveis e esquisitas. Cada página estava preenchida com palavras de dor e desprezo por aqueles que haviam o deixado, e então, as palavras simplesmente pararam.
***

De pé, naquele lugar infernal e perturbado, eu corri meus dedos pela espinha do livro e pude ver claramente que a última página do livro tinha sido arrancada. O que estava escrito lá, eu não sabia.

Me senti oprimido pelo relato que tinha acabado de ler, enquanto um medo muito palpável e real subiu por todo meu corpo. Me ocorreu um pensamento, de que os relatos de doença que afetaram os exilados de Dungorth era notavelmente semelhante às experiências de John. Eu não podia negar as coincidências e comecei a suspeitar que algo realmente tinha afetado-o; algo realmente tangível. Uma contaminação do solo? Um veneno, talvez? Eu já havia lido sobre bolsões de gás metano que escapavam através da terra ou no mar que haviam matado muitos, mas não estava fora de questão que algo semelhando, em doses menores, poderia ser o que causava alucinação em massa, doenças e loucura. Era a explicação mais viável que eu conseguia ter. Mas então, por que não tinha me afetado? Talvez, como dizia no livro, algumas pessoas eram mais imunes à contaminação do que outros.

Minha atenção, mais uma vez, voltou para o túmulo, ou pelo menos o que tinha sobrado dele. Me perguntava o que o povo tinha feito com o corpo do amado, mas também odiado padre, assumindo ser aquele referido como "o pai". Teriam re-enterrado em outro local? Talvez os seguidores estivesse com medo que o túmulo fosse saqueado. A resposta veio a mim quase que imediatamente: Eles tinham o queimado em seu túmulo, em baixo da própria igreja que haviam construído; O buraco era onde seu corpo um dia tinha sido posto, agora marcado eternamente pelas manchas negras da fumaça e da brasa. Estremeci com o pensamento que tudo isso podia ter sido feito enquanto ele ainda estava vivo.

O ar ficara notavelmente mais gélido, mas não foi isso que marcou o começo do meu calvário. Eu me curvei, olhando de  perto o que enxergara na borda do túmulo. Eu não conseguia acreditar. Lá, na borda do buraco, havia uma assinatura cruel deixada pelo ex-atendente da igreja.  Na escuridão, eu devia ter deixado passar, mas agora estava nítida. Era uma grande mancha negra em formato de uma mão, escurecida e queimada, como se algo tivesse tentando sair da sua cova eterna e esquecida.

Minha respiração saiu lentamente de meus pulmões, congelando no exterior enquanto meu coração acelerava pela mera possibilidade do que algo tinha se levantado do buraco no chão. Enquanto o ar esfriava, me levantei e fiz meu caminho até o pé da escada - tinha que sair logo dali, para a luz do sol, para a saída. Foi então que ouvi. No começo era só a impressão que escutava algo. Depois ficou mais definido, aumentando intensamente e claramente. Algo agitava-se lá em cima.

Pessoas. Muitas delas, gemendo e lamentando, chorando por suas vidas em coro. Cânticos na escuridão, ambos cristãos e de algo mais antigo, uma fétida religião que havia desaparecido por bem. Enquanto as lamúrias de miséria aumentavam, uma única voz se distinguiu das outras. Ensurdecedoramente terrível, falou sobre o fim dos tempos, da traição e do pecado desimpedido. A voz gritava e urrava, renunciando a todos que não ouvissem, um sermão vingativo vindo do altar de pedra no andar de cima.

Sem pensar, pulei para dentro do túmulo vazio, desligando a luz do meu celular e fique encolhido, tremendo até a alma por causa das vozes que praguejavam contra o mundo e contra os outro - ódio e absoluto desespero com o mal, tanto fora quanto dentro. Os rugidos de agonia aumentavam, homens, mulheres e crianças chorando e xingando por acreditar terem sido abandonados por seu Deus. Acusações, perseguições e o rasgar da carne. Depois, o silêncio. Agarrei-me ao fundo da cova carbonizada, cravando minhas no solo. Meu ceticismo a respeito de qualquer força invisível ou espiritual tinha se reduzido drasticamente. Tremendo violentamente por causa do frio, esperei passar alguns minutos até ter coragem de ligar novamente a luz de meu celular.

Espiando por cima da borda do túmulo, me desloquei lentamente até o chão. Os salões estavam vazios, não havia nada além de ossos e crânios quebrados de inúmeras vidas arruinadas por causa do mal que vivia na encosta. Finalmente criei coragem com meus nervos desafiados e crenças destruídas, subi as escadas vagarosamente, com um medo inflexível do que poderia estar me esperando no topo; mas infelizmente era a única saída, e estaria ferrado se ficasse ali para apodrecer como tinha sido o destino daquelas pobres pessoas, encolhidos nas profundezas.

O salão estava vazio. O mais silenciosamente o possível, cruzei o lugar desviando rapidamente dos detritos e escombros, cortando dentre o silêncio opressivo, finalmente saindo pela porta para o ar livre. Uma vez fora da igreja caí de joelhos, tremendo de ansiedade e tentando processar a experiência toda.  Minha mente voltou para o que tinha estado naquela sepultura, e mais importante, onde estava agora. Então eu soube. Correndo o mais rápido que pude, atravessei entre os arbustos e o matagal, alcançado a trilha rapidamente, sem ser parado pelo mal que havia impedido os colonos de escapar, mas não parei, metade de mim morrendo de medo de ser perseguido e a outro metade implorando para que meus instintos estivessem errados.

O ar queimou meus pulmões enquanto me apressava pela trilha, em minutos o portão de madeira já estava a vista e eu estava fora da colina maldita, um lugar que nunca me atreveria a ir novamente. Nem por dinheiro, nem por uma história, nem por nada. Eu teria respirado em alívio, mas isso nem passou pela minha cabeça. Eu tinha de voltar à pousada o mais rápido possível. Continuando a correr o mais rápido que pude, lutei contra a exaustão e o limite do meu corpo, e logo eu já estava no Lorde de Dugorth.

Cambaleando em direção da construção antiga, foi então que ouvi. Gritos, de agonia, de terror, e de misericórdia. Eu soube imediatamente de onde e de quem. Descobri em mim uma nova energia quando me pus a correr mais uma vez, atravessando as portas do bar. Lá estava tudo quieto. Pessoas da vila estavam sentadas, imóveis olhando suas bebidas. O senhoril também parado, olhando para o chão. Os gritos continuavam a vir dos quartos de cima. Implorei e supliquei por ajuda a alguém, mas ninguém ouvia. Percebendo que me encontrava sozinho para enfrentar aquilo, parti para as escadas. Para minha surpresa, o senhoril interveio com força me puxando para trás, seus braços apertados com força em meus ombros.


"Deixe ele meu filho, você não pode o ajudar!" ele gritou, conforme mais dois homens se esforçavam para me conter.


Em um impulso forcei meu cotovelo para trás e acertei o senhoril, me soltei e em uma corrida desesperada derrubei os outros dois homens enquanto subia  a escada. Seguia os agoniados gritos até o quarto de John. A porta estava trancada. Respirei fundo e comecei a arrombar a porta com meu ombro, batendo, batendo e batendo, sentindo ela ceder. A cada empurrão eu ouvia o gaguejar interrompido de alguém lá dentro , como em um choro. Finalmente, a porta cedeu e eu pude entrar no quarto.


Por um momento testemunhei algo que se parecia com um homem, ou pelo menos algo que um dia foi vivo. Escurecido e queimado, virou a cabeça para me olhar - Não posso dizer se ele chegou a me ver, uma vez que não tinha olhos. Em seus braços estava o amassado sem vida corpo de John R---.

Então se virou, esgueirando-se para fora por uma janela aberta, levando junto o corpo do homem. Ambos haviam partido.


O quarto tomou uma aparência aquosa e volátil. Não sei se foi a extensão dos meus esforços ou apenas a aproximação daquele ser grotesco, mas um enjoo tomou de mim, atravessando meu estomago e, enquanto eu perdia a consciência, eu chorava em desespero.
***

Isso tudo aconteceu a vários dias. Parece que bati com a cabeça contra o chão quando caí e feri minha perna de algum jeito. O médio da vila que me examinou receitou-me alguns antibióticos para o que acreditava ser uma infecção estomacal, e um sedativo para aliviar minha ansiedade. Com pouca coisa para me distrair, tomei meu tempo passando tudo que eu lembro para o papel. Afinal, um escritor tem de escrever.

Ontem visitei pela primeira vez o quarto de John depois que ele foi levado. Estava silencioso, e parecia vazio de um jeito estranho, como nunca achei que poderia estar. Uma ausência de vida é o melhor jeito que consigo descrever. O lugar estava revirado, com seus pertences espalhados pelo chão. Assumi que ninguém tinha estado lá desde então, o senhorio devia estar com muito medo, mas eu não podia culpá-lo por isso. Quando me virei para sair do quarto vago, vi um item que parecia não pertencer ao lugar. Na cama que um dia tinha sido de John, havia um pedaço de papel amassado e manchado. Eu sabia de onde era, mesmo sem precisar lê-lo; era a última página da crônica, o final daqueles que tinham se estabelecido na colina. Um labirinto de frases repetidas em línguas misteriosas e esquecidas, espalhadas pelo papel frágil, mas algo em inglês se destacou. Simplesmente dizia: "Ninguém vai embora".

Eu não sei mais o que fazer agora. Me sinto exausto, mas minha mente continua revivendo os últimos dias, parte por parte. Estou arruinado pela culpa, sinto que minha presença naquela colina fez com que aquela monstruosidade viesse buscar John. Caso o contrário, por que esperaria tanto tempo?

Acho que eu tive sorte porque fui para a colina quando aquele ser não estava lá, e foi isso que provavelmente salvou minha vida. De qualquer forma, seja lá como os moradores vão explicar isso, vou relatar o desaparecimento de John quando voltar para Glasgow e também pedirei para os policiais darem uma olhada no número de moradores desaparecidos ao longo dos anos. Acho que eles vão se surpreender com a quantidade.

Meu lar parece estar a milhões de quilômetros de distância, mas sei que estarei lá em breve, para minha cama, um mundo totalmente distante desse em que presenciei os eventos recentes; Quem sabe lá eu consiga entender melhor essa loucura. Espero chegar lá em algumas horas, embora o ônibus esteja um pouco atrasado...

FIM