segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A Balsa - Stephen King (Final)


Randy olhou para a superfície da balsa. Podia deitá-la, naturalmente, mas as tábuas só tinham uns trinta centímetros de largura. Havia uma plataforma para mergulho que era adaptada à balsa durante o verão, mas pelo menos isso fora desmontado e guardado em algum lugar. Nada mais restava senão o próprio piso da balsa, quatorze tábuas, cada uma com trinta centímetros de largura e seis metros de comprimento. Não era possível deitá-la, deixar seu corpo sem sentidos sobre qualquer daquelas fendas.
Pise em uma fenda, e sua mãe ofenda.
Cale-se.
E então, tenebrosamente, sua mente sussurrou: Vá, mesmo assim. Deite-a aí e nade para a salvação!

Contudo, ele não fez isso, não podia. Um terrível sentimento de culpa cresceu nele, a essa idéia. Abraçou-a, sentindo o peso macio e firme em seus braços e costas. Ela era uma grande garota.
Deke tombou de todo.
Randy segurava LaVerne nos braços doloridos e viu aquilo acontecer. Não queria olhar e, por longos segundos que lhe pareceram minutos, virou o rosto inteiramente. No entanto, seus olhos sempre vagavam para lá.
Com Deke morto, tudo pareceu mais rápido.
O restante de sua perna direita desapareceu. A perna esquerda estirou-se, mais e mais, até ele assemelhar-se a um dançarino de balé, com apenas uma perna à vista, fazendo uma pirueta impossível. Houve o estalar da fúrcula em sua pélvis e então, quando o estômago de Deke começou a inchar ominosamente sob nova pressão, Randy desviou os olhos por muito tempo, procurando não ouvir os sons líquidos, tentando concentrar-se na dor em seus próprios braços. Pensou que talvez poderia fazer LaVerne voltar a si, mas por enquanto era melhor sentir a dor latejante nos braços e ombros. Aquilo lhe dava algo em que pensar.
Às suas costas houve um som como o provocado por enormes dentes mastigando um punhado de balas quebra-queixo. Quando olhou, as costelas de Deke penetravam pela fenda. Os braços dele estavam erguidos e distendidos. Ele parecia uma obscena paródia de Richard Nixon fazendo o V da vitória, o sinal que enlouquecera o público, nos anos sessenta e setenta.
Ele tinha os olhos abertos. A língua estirava-se para Randy. Randy se virou de novo, ficou olhando através do lago. Procure luzes, disse a si mesmo. Sabia que por lá não haveria luzes, mas quis convencer-se disso. Procure por luzes Pelas margens, alguém deve estar passando a semana em seu chalé, apreciando a folhagem do outono, não iria perder o espetáculo, viria com sua Nikon, o pessoal em casa adoraria as fotos.
Quando tornou a olhar para trás, os braços de Deke estavam erguidos em linha reta. Não era mais Nixon; agora parecia um juiz de futebol, indicando que o ponto extra fora válido.
A cabeça de Deke dava a impressão de pousada nas tábuas. Os olhos continuavam abertos. A língua continuava espichada para fora.
— Oh, Ciisco — murmurou Randy, tornando a olhar para outro lado. Seus braços e ombros agora gritavam, mas permaneceu segurando LaVerne nos braços.
Olhou para a margem mais distante do lago. Estava totalmente escura. Estrelas salpicavam o céu negro, desenrolavam-se através dele, uma fita de leite frio, de algum modo suspensa bem alto no ar. 
Os minutos passaram. 
Ele deve ter ido agora. Você já pode olhar. Está bem, está bem, eu sei. Só que não vou olhar. Apenas por segurança, eu não vou olhar. Certo? Certo. Em definitivo. Assim dizemos todos e assim todos nós dizemos. Ele terminou olhando mesmo, apenas em tempo de ver os dedos de Deke serem puxados para baixo. Eles se moviam — provavelmente o movimento da água sob a balsa era transmitido à coisa desconhecida que agarrara Deke e esse mesmo movimento se transmitia aos seus dedos. Provavelmente, provavelmente. Contudo, a Randy parecia que Deke lhe acenava. O Cisco Kid acenando adeus. Pela primeira vez, sentiu sua mente sofrer um doentio repelão — ela pareceu inclinar-se, da maneira como a balsa se inclinara, quando eles quatro haviam ficado em pé sobre o mesmo lado. Percebeu-a endireitar — sem mais, de repente, compreendeu que a loucura — a verdadeira demência — talvez não estivesse muito distante.
O anel de futebol de Deke — Assembléia Geral, 1981 — escorregou lentamente do terceiro dedo de sua mão direita. A claridade das estrelas refletiu-se no ouro e brincou nos minúsculos sulcos entre os números gravados — 19, em um lado da pedra avermelhada, 81, no outro lado. O anel caiu-lhe do dedo. Era um pouco grande demais para encaixar-se na fenda e, naturalmente, não se comprimiria.
Ficou caído ali. Era tudo que restava de Deke, agora. Deke se fora. Nada mais de garotas de cabelos e olhos escuros, nada mais de bater no traseiro nu de Randy com uma toalha molhada, quando Randy saía do chuveiro, nada mais de corridas antes do jogo pelo meio do campo, com fãs levantando-se na ponta dos pés nas arquibancadas e as chefes de torcida executando cabriolas histéricas nas linhas laterais.
Nada mais de escapadas após o escurecer, no Camaro, com Thin Lizzy clamando "Os rapazes voltaram à cidade", no gravador do carro. Nada mais de Cisco Kid. Houve aquele vago ruído arranhando novamente — uma lona enrolada, sendo lentamente puxada pela fenda de uma janela.
Randy estava em pé e descalço sobre as tábuas. Olhou para baixo e viu as fendas a cada lado dos dois pés subitamente cheias de pegajosa escuridão. Seus olhos esbugalharamse. Pensou na maneira como o sangue jorrara da boca de Deke, quase semelhante a uma corda sólida, na maneira como os olhos dele haviam saltado, parecendo providos de molas, enquanto a hemorragia, provocada pela pressão hidrostática, esmagava-lhe o cérebro.
A coisa me fareja. Sabe que estou aqui. Conseguirá subir? Conseguirá subir pelas fendas? Conseguirá? Conseguirá? Olhou para baixo, inconsciente do peso flácido de LaVerne, fascinado pela enormidade da questão, perguntando-se o que sentiria a coisa ao fluir sobre seus pés, quando se ancorasse neles.
O cintilar negro subiu quase até a borda das fendas (Randy ficou na ponta dos pés, sem mesmo perceber o que fazia) e depois desceu. Recomeçou o ruído de lona deslizando. De repente, Randy tornou a ver a coisa sobre a água, uma grande verruga escura, agora talvez a uns cinco metros de distância. Ela subia e descia com as pequeninas ondulações da superfície, subia e descia, subia e descia... e quando Randy começou a ver as cores pulsando uniformemente sobre ela, desviou os olhos para outro lado. Colocou LaVerne sobre o piso, e tão logo ficou livre do peso, seus braços começaram a tremer loucamente. Deixou que tremessem. Ajoelhou-se ao lado dela, cujos cabelos espalhavam-se sobre as tábuas brancas, em um irregular leque escuro. De joelhos, ele ficou espiando aquela verruga escura na água, pronto para levantar LaVerne novamente, se percebesse sinais de movimento na coisa.
Começou a bater-lhe nas faces de leve, primeiro em uma, depois na outra, repetindo a dose, como um segundo tentando animar um boxeador. LaVerne não queria voltar a si. Ela não queria atender ao indicador Siga e ganhar duzentos dólares ou dar uma volta no Trem-fantasma. LaVerne já vira o suficiente. Contudo, Randy não podia segurá-la a noite inteira, levantando-a como a um saco de lona, sempre que a coisa se movesse (e tampouco se podia ficar olhando demais para a coisa; aí estava outro detalhe). Ele aprendera um truque, no entanto. Não o aprendera na universidade, mas com um amigo de seu irmão mais velho. Esse amigo fora médico paraquedista em Nam e conhecia todos os tipos de truques — como catar piolhos em um couro cabeludo humano e fazê-lo apostar corrida em uma caixa de fósforos, como diluir cocaína em laxativo infantil, como costurar cortes fundos com agulha e linha comuns. Certo dia, quando conversavam sobre maneiras de despertar-se bêbados profundamente embriagados, para que esses bêbados profundamente embriagados não vomitassem nas próprias gargantas e morressem, como Bon Scott, o cantor do AC/DC havia feito.
— Quer fazer alguém voltar a si rapidamente? — perguntara o amigo com o repertório de truques interessantes. — Experimente isto.
Então, ele lhe ensinou o truque que Randy ia usar agora. Inclinando-se para LaVerne, ele lhe mordeu o lóbulo da orelha, o mais forte que pôde.
Sangue quente e acre espirrou em sua boca. As pálpebras de LaVerne se ergueram como persianas. Ela gritou, em uma voz rouca e rabujenta, depois o esmurrou com raiva.Randy olhou para cima e viu apenas a parte mais distante da coisa; o restante já estava debaixo da balsa. Ela se movera com uma fantástica, terrível e silenciosa velocidade. Randy tornou a içar LaVerne, seus músculos gritando em protesto tentando enovelar-se em cãibras. Ela lhe batia no rosto. Uma de suas mãos atingiu-lhe o nariz sensível e ele viu estrelas vermelhas.
— Pare com isso! — gritou, deslizando os pés para as tábuas. — Pare com isso sua cretina, a coisa está debaixo de nós novamente! Pare ou eu a deixo cair, juro por Deus como deixo!
Os braços dela pararam imediatamente de agitar-se e se enrolaram quietamente em torno do pescoço de Randy, como em um abraço de afogado. Os olhos de LaVerne pareciam brancos, à claridade das estrelas.
— Pare com isso! — Ela não parou. — Pare, LaVerne, está me sufocando!
Ela apertou com mais força. O pânico aflorou à mente de Randy. O entrechocar cavo das barricas assumira uma nova característica, mais seca, mais abafada. Era a coisa lá embaixo, pensou ele.
— Não posso respirar!
A pressão afrouxou um pouco.
— Agora, escute. Vou pôr você no chão. Tudo vai ficar bem, se você... Ela, no entanto, ouvira apenas pôr você no chão. Seus braços enrolaram-se naquele aperto mortal novamente. Randy tinha a mão direita nas costas dela. Engalfinhou os dedos e arranhou-a. LaVerne agitou as pernas, ganindo roucamente e, por um momento, ele quase perdeu o equilíbrio. Ela o percebeu. O medo, maior que a dor, fez com que parasse de lutar.
— Fique em pé nas tábuas.]
— Não!
A negativa saiu em um jato no rosto dele, quente como um vento do deserto.
— A coisa não poderá pegá-la, se ficar em pé nas tábuas.
— Não, não me ponha no chão! Ela vai me pegar, sei que vai, sei que vai...
Ele tornou a arranhar-lhe as costas. LaVerne gritou de raiva, de dor e medo.
— Fique em pé ou a deixo cair, LaVerne.
Ele abaixou, lenta e cuidadosamente, ambos respirando em haustos curtos, chiantes
— flauta e oboé. Os pés dela tocaram as tábuas. LaVerne encolheu as pernas para cima, como se as tábuas estivessem em brasa.
— Ponha os pés no chão! — sibilou Randy. — Eu não sou Deke, não agüento segurá-la a noite inteira!
— Deke...
— Está morto.
Os pés dela pousaram nas tábuas. Pouco a pouco, ele a foi largando. Ficaram à frente um do outro, como dançarinos. Randy podia vê-lo esperando o primeiro toque da coisa.
A boca de LaVerne ofegou, como a de um peixe dourado.
— Randy — sussurrou ela. — Onde está a coisa?
— Embaixo. Olhe para baixo.
Ela olhou. Ele olhou também. Viram a escuridão que recheava as fendas, preenchendo-as agora por quase toda a extensão da balsa. Randy sentiu a ansiedade da coisa e pensou que LaVerne também a sentira.
— Randy, por favor...
— Pssst!
Os dois ficaram quietos.
Randy esquecera de tirar o relógio ao entrar na água e agora ele marcava quinze minutos. Às vinte e um quarto, a coisa negra tornou a deslizar para fora da balsa. Afastou-se até uns quatro, cinco metros e então parou, como fizera antes.
— Vou me sentar — disse Randy.
— Não!
— Estou cansado. Vou me sentar e você ficará vigiando. Lembre-se apenas de ficar olhando para longe. Depois eu me levanto e você fica sentada. Faremos assim. Tome — e ele lhe entregou o relógio. — Turnos de quinze minutos.
— Aquilo comeu Deke — sussurrou ela.
— Eu sei.
— O que é?
— Não sei.
— Estou com frio.
— Eu também.
— Então, me abrace.
— Já fiz isso o suficiente.
Ela pareceu conformar-se.
Sentar-se era o paraíso; não ter que vigiar a coisa era beatífico. Em vez disso, ele vigiou LaVerne, certificando-se de que ela continuava desviando os olhos da coisa sobre a água.
— O que vamos fazer, Randy?
Ele refletiu.
— Esperar — disse.
Ao final de quinze minutos, Randy levantou-se e deixou que ela primeiro ficasse sentada e depois deitada, por meia hora. A seguir, fez com que LaVerne se levantasse novamente e ela permaneceu em pé por quinze minutos. Continuaram assim. Faltando quinze minutos para vinte e duas horas, uma fria côdea de lua subiu no céu e lançou uma trilha luminosa sobre a água. Às vinte e duas e trinta, ouviram um grito agudo e solitário ecoando através do lago. LaVerne soltou um grito estridente.
— Cale a boca — disse ele. — Foi apenas um mergulhão-do-norte.
— Estou gelando, Randy... Estou toda dormente.
— Nada posso fazer quanto a isso.
— Abraça-me — pediu ela. — Você tem que me abraçar. Ficaremos abraçados, esquentando-nos. Podemos nos sentar, os dois, vigiar a coisa juntos. Ele resistiu à idéia, mas o frio penetrava em sua carne, agora atingia os ossos.
— Está bem — disse.
Sentaram-se juntos, os braços passados um em torno do outro, e algo aconteceu — natural ou perverso, mas aconteceu. Randy sentiu-se enrijecer. Uma de suas mãos encontrou o seio de LaVerne, comprimiu-se sobre o náilon úmido e apertou. Ela emitiu o ruído de um suspiro e sua mão caminhou para a virilha da sunga. Randy deslizou a outra mão para baixo e encontrou um lugar onde existia algum calor.
Empurrou-a de leve, fez com que ela se deitasse.
— Não — disse LaVerne, mas a mão nas virilhas dele começou a mover-se mais depressa.
— Posso ver a coisa — disse Randy. As batidas de seu coração aumentavam de velocidade novamente, impedindo o sangue com mais rapidez para a superfície de sua pele nua e friorenta. — Posso vigiá-la.
LaVerne murmurou alguma coisa e ele sentiu o elástico descendo em seus quadris, até o alto das coxas. Vigiou a coisa. Randy deslizou para cima, depois para a frente. Penetrou-a. Calor. Ceús, LaVerne era quente ali, pelo menos. Ela deixou escapar um ruído gutural e seus dedos aferraram as nádegas frias e comprimidas do companheiro. Randy continuou vigiando. A coisa não se movia. Vigiou-a. Vigiou-a atentamente. As sensações táteis eram incríveis, fantásticas. Sua experiência não era grande, mas tampouco permanecera virgem. Havia feito amor com três garotas, mas nunca havia sido assim. Ela gemeu e começou a erguer os quadris. A balsa balançava docemente, como o mais duro colchão d'água do mundo. Por baixo dela, as barricas murmuravam ocamente.
Randy vigiava a coisa. As cores começaram a girar — lentamente agora, sensualmente, não ameaçadoras; ele ficou espiando e viu as cores. Tinha os olhos arregalados. As cores estavam em suas pupilas. Não sentia mais frio agora; sentia calor, o calor que sentimos no primeiro dia de volta à praia, em princípios de junho, quando o sol nos espeta a pele branquicenta do inverno, avermelhando-a, dando-lhe alguma (cores) cor, alguma tonalidade. O primeiro dia na praia, primeiro dia de verão, sugerindo antigas canções dos Beach Boys, sugerindo os Ramones. Os Ramones lhe diziam que Sheena é uma roqueira punk, os Ramones lhe diziam que você pode pegar carona até a praia Rockaway, para a areia, a praia, as cores (movendo-se, a coisa começa a mover-se) e a sensação do verão, sua contextura; Gary U.S. Bonds, o período letivo encerrou-se e eu posso torcer pelos Yankees das arquibancadas, garotas de biquíni na praia, a praia, a praia, oh, a gente ama, a gente ama (ama) a praia, a gente ama (amo, eu amo seios firmes e fragrantes de óleo Coppertone, e se o fundilho do biquíni fosse diminuto o bastante, era possível ver-se alguns (cabelos, seus cabelos, SEUS CABELOS ESTÃO NA OH, CÉUS, NA ÁGUA, SEUS CABELOS)
Ele recuou subitamente, tentando levantá-la, mas a coisa se movera com oleosa velocidade, enredando-se nos cabelos de LaVerne como uma espessa teia de cola negra. Quando Randy a ergueu, ela já estava gritando e estava pesada com a coisa; a coisa que saiu da água, em uma membrana contorcida e horripilante, que se enrolava em vívidas cores nucleares — escarlate, vermelhão, esmeralda cintilante, ocre opaco. A membrana fluiu para o rosto de LaVerne, cobrindo-o como uma maré, obliterando-o.
Ela sacudia os pés, tamborilando a madeira do piso. A coisa se torcia e movia onde estivera o rosto de LaVerne. O sangue lhe escorreu pelo pescoço em borbotões, gritando, sem se ouvir gritar, Randy correu para ela, firmou o pé em sua anca e empurrou. Ela saiu rolando e caiu pela borda da balsa, as pernas como alabastro ao luar. Por alguns momentos intermináveis, a água agitou-se e bateu contra a lateral da balsa, como se alguém houvesse fisgado ali um peixe gigantesco, que se debatia como o diabo.
Randy gritou. Continuou gritando. E então, para variar, gritou ainda mais. Uma meia hora mais tarde, muito depois de terminada a frenética agitação na água, os mergulhões-do-norte gritaram em resposta.
Aquela noite foi eterna.O céu começou a clarear no leste, quando faltava um quarto para as cinco. Randy sentiu-se um pouco mais animado. Foi uma animação momentânea apenas; era tão falsa como o amanhecer. Ficou em pé sobre as tábuas, de olhos semicerrados, o queixo fincado no peito. Estivera sentado nas tábuas até uma hora atrás, tendo despertado subitamente — até então sem mesmo saber que adormecera, a esta era a parte aterradora — por causa daquele indivisível som sibilante de lona. Saltou em pé, apenas segundos antes de aquele negrume começar a sugar com ânsia por ele, nas fendas entre as tábuas. Sua respiração sibilava, entrando e saindo; ele mordeu o lábio, fazendo-o sangrar.
Dormindo, você esteve dormindo, seu imbecil!
A coisa tornara a deslizar debaixo da balsa meia hora mais tarde, porém ele não tornou a sentar-se. Receava sentar-se, temia dormir novamente e sabia que, desta vez, sua mente não o faria acordar em tempo. Seus pés continuavam firmemente plantados nas tábuas, quando uma claridade mais forte, o verdadeiro amanhecer, encheu o leste, e os primeiros pássaros matinais começaram a cantar. O sol nasceu e, por volta de seis horas, o dia estava claro o suficiente para permitir-lhe ver a praia. O Camaro de Deke, amarelo-vivo, estava bem lá onde seu dono o estacionara, encostado à estaca de cerca. Uma vívida fileira de camisas e suéteres, além de quatro jeans, se torcia em pequenas formas, até a praia. Aquela visão o encheu de renovado horror, quando pensava que sua capacidade para o horror já se exaurira. Podia avistar o seu jeans, uma perna virada pelo avesso, o forro do bolso aparecendo. Seu jeans parecia a salvo, tão a salvo, jazendo lá na areia; apenas esperando que ele chegasse e virasse a perna da calça pelo direito, agarrando o bolso enquanto fazia isso, para que as moedas não caíssem. Quase podia ouvi-las sussurando contra sua perna, enquanto vestia as calças, podia sentir-se abotoando o botão de latão acima da braguilha... (você amou, sim, ele amou).
Olhou para a esquerda e lá estava ela, negra, redonda como uma ficha de jogo, flutuando levemente. As cores começaram a girar através de sua superfície e ele virou rapidamente o rosto.
— Vá embora — grasnou. — Vá embora ou vá para a Califórnia e faça um teste para um filme de Roger Corman!
Um avião roncou em algum lugar distante e ele mergulhou em sonolenta fantasia: Fomos dados como desaparecidos, nos quatro. A busca se espalha, a partir de Horlicks. Um fazendeiro se lembra de ter visto passar um Camaro amarelo. "como um morcego, fugido do inferno". A busca centraliza-se na área do Lago Cascade. Pilotos particulares preparam-se para uma rápida checagem aérea, e um sujeito, — dirigindo acima do lago seu Tirin Bonanza, avista um rapazola na balsa, tem um rapaz, olá, um sobrevivente, um..."
Randy surpreendeu-se junto à borda novamente, quase caindo, e tornou a esmurrar o nariz, gritando com a dor.
A coisa negra partiu como flecha para a balsa, imediatamente, apertando-se debaixo dela — talvez pudesse ouvir, sentir... ou qualquer coisa.
Randy esperou.
Desta vez, passaram-se quarenta e cinco minutos, antes da coisa surgir à vista. A mente de Randy orbitava lentamente à claridade que ia aumentando. (você ama) sim, eu adoro torcer pelos Yankees e pelos Catfìsh, (você gosta dos Catfìsh), sim, eu gosto de... Rota 66, lembra-se do Corvette de George Maharis, Marfim Milner no Corvette, (você gosta de Corvette), sim, eu gosto do Corvette, (ele ama, você ama), o sol está tão quente, é como um vidro queimando, estava nos cabelos dela, é a luz que mais recordo, a luz do verão, luz (a luz do verão, ao entardecer).
Randy estava chorando.
Ele chorava, porque agora havia sido acrescentado algo novo... A cada vez que tentava sentar-se, a coisa deslizava para baixo da balsa. Portanto, ela não era totalmente estúpida; pressentia ou imaginava que podia agarrá-lo, enquanto estava sentado.
— Vá embora! — soluçou ele, dirigindo-se à grande verruga negra que flutuava na água. A cinqüenta metros de distância, zombeteiramente próximo, um esquilo saltitava de um lado para outro, no capô do Camaro de Deke. — Vá embora, por favor, vá para qualquer lugar, mas me deixe em paz! Não gosto de você! Não a amo!
A coisa não se movia. As cores começaram a girar através de sua superfície visível.
(você me ama, você me ama)
Randy desviou os olhos e contemplou a praia, procurou socorro, mas lá não havia ninguém, absolutamente ninguém. Seu jeans continuava lá, uma perna virada pelo aveso, o forro branco do bolso aparecendo. Suas calças não davam mais a impressão de que seriam recolhidas por alguém. Pareciam relíquias.
Ele pensou: Se eu tivesse uma arma, agora poderia matar-me.
Ficou em pé na balsa.
O sol escondeu-se.
Horas mais tarde, a lua apareceu.
Não muito depois disso, os mergulhões-do-norte começaram a gritar.
Não muito depois disso, Randy se virou e olhou para a coisa negra na água. Não podia matar-se, mas talvez a coisa desse um jeito, sem que houvesse dor alguma; talvez fosse para isso que havia as cores. 
(você me ama você me ama você me ama)
Olhou para ela, e lá estava, flutuando, ao sabor das ondas.
— Cante comigo — grasnou Randy. — Posso torcer pelos Yankees das arquibancadas... Não tenho de me preocupar com professores... Estou tão alegre porque as aulas terminaram... Eu vou... cantar e gritar.
As cores começaram a formar-se e contorcer-se. Desta vez, Randy não desviou os olhos.
— Você ama? — sussurou ele.
Em algum ponto bem distante, através do lago vazio, um mergulhão-do-norte piou.
FIM

fonte: http://conteudoperverso.blogspot.com.br/2014/01/a-balsa-stephen-king-final.html