domingo, 25 de dezembro de 2016

Os Estranhos Moradores do Hotel Lancaster

Durante o expediente na repartição pública, Ramon fazia questão de ser apenas um fantasma, aquele que batia o ponto exatamente no horário, respondia aos cumprimentos dos colegas de trabalho com resmungos, sentava-se à mesa na seção contábil e anulava-se no mundo dos números. Nunca foi convidado para reunir-me com a turma no barzinho às sextas-feiras à noite, não participava de brincadeiras tipo amigo-secreto, jamais foi a um batizado de filhos de funcionários, sua boca sempre permaneceu descaída quando o chefe contava piadas idiotas – ninguém tentava conquistar sua amizade, o que lhe parecia uma bênção.
Mas há dois dias o comportamento de Ramon mudou. Passou a xingar os colegas da repartição por qualquer coisinha, a chutar a lixeira perto da mesa, teve duas ou três crises constrangedoras de choro convulso, ali, bem diante de todos. Consequência: prestes a terminar o expediente, foi chamado à sala da chefia, recebeu uma suspensão de três dias e conselho para procurar um psicólogo.

O motivo para essa anormalidade no seu cotidiano de arquivo-morto foi que assaltaram sua moradia e furtaram, entre outras coisas, uma luneta que ele, Ramon, levou exatos oito meses para pagar em suadas prestações. A luneta era seu bem mais precioso, o instrumento que dava alguma cor em seu viver: Ramon saía da repartição, pegava o ônibus, chegava ao bairro, comprava uma quentinha no restaurante da esquina e subia para a residência no sétimo andar. Tomava banho, vestia o roupão, comia, tomava um copo d'água e ia para a janela bisbilhotar os moradores do Grande Hotel Lancaster – um prédio de doze andares muito antigo situado do outro lado da rua.
O edifício estava condenado, mas, sabe-se lá por qual razão, todas as tentativas de implosão tinham acabado em tragédia, em menor ou maior proporção. Da última vez (e isso fazia uns três meses), os operários estavam instalando os explosivos na base da construção quando um deles foi para os ares, a carga de dinamites misteriosamente detonou na mão do especialista e, o mais curioso, apenas o profissional fragmentou-se como uma pedra de gelo atingida por um martelo. Do prédio mesmo, não caiu nem mesmo uma lasca de reboco. Como o imóvel não queria ser demolido, uns doidos começaram a usá-lo como moradia, às escondidas.
Talvez não fossem realmente doidos, apenas excêntricos – assim pensava Ramon –, já que ninguém ousava aparecer na rua durante o dia. A bem da verdade, só algumas janelas brilhavam durante a noite, uns poucos moradores descerravam as cortinas e, parece, não se importavam que Ramon espionasse suas intimidades.
No começo Ramon costumava olhar um jovem casal morador no quinto andar e ficava intrigado com a maneira peculiar de eles fazerem sexo. Antes e depois da relação carnal os dois ajoelhavam-se ao lado da cama e pareciam rezar – mas com o passar das noites Ramon percebeu que o casal trocou a luz do teto, fluorescente, por lâmpadas que proporcionavam uma claridade soturna, de um roxo-violáceo, e viu também que num móvel escuro de contornos semelhante a um oratório queimavam velas vermelhas e pretas. De pronto perdeu o interesse pela intimidade daquela gente. Havia no sexto andar uma garota lésbica que lhe chamou a atenção pela facilidade com que arranjava parceiras. Ficou fascinado pelo instinto caçador da moradora – até que a flagrou numa suruba com três marmanjos. Aquilo foi a gota d'água, Ramon perdeu todo o respeito que nutria por ela. No mais, o que se via em um ou outro apartamento eram coitos simples, papai-e-mamãe, sem nenhum atrativo digno de observação. Exceto no sétimo andar. O casal de meia idade fazia estripulias na cama que era de infantilizar as posições sexuais do livro Kama Sutra. Assim, Ramon concentrou suas atenções apenas naquelas duas pessoas.
Agora estava de gancho. Ramon deixou o gabinete do chefe de seção com uma raiva tão danada que sentia na boca o gosto amargo do fel destilando em seu organismo - além de ficar sem a luneta, teria que se afastar do trabalho, sem sal, é verdade, mas que de qualquer forma ajudava a enganar a miserabilidade da rotina diária. Voltou para sua mesa e estava tão revoltado que ninguém ousou ao menos levantar os olhos para o seu lado.
Deixou a repartição como sempre fazia, às cinco da tarde, e aproveitou o restinho do dia para passear pelo calçadão, vistoriando com o olhar atento as óticas e lojas congêneres. Viu algumas lunetas, a maioria era produto de baixíssima qualidade, as de alto padrão estavam acima de suas possibilidades monetárias. Por fim acabou comprando um binóculo ordinário e prometeu a si mesmo que tal coisa seria um paliativo. No findar do mês haveria de entrar no crediário para a aquisição de nova luneta – tão portentosa como a que fora furtada. Comeu um cachorro-quente numa lanchonete e foi ao cinema, assistiu a um filme de ficção científica sobre a dominação da humanidade por robôs, saiu de lá por volta das onze da noite e rumou para casa – aquela era a hora de testar a funcionalidade do seu novo brinquedinho, se bem que não estava botando fé naquele binóculo tão mixuruca.
Ao chegar ao prédio o porteiro da noite deixou por breve momento a leitura do livrinho de faroeste e entregou a Ramon um curioso envelope roxo com seu nome escrito em letras góticas.
– Quem deixou isso? – perguntou Ramon ao porteiro.
– Sei lá, eu fui ao banheiro, quando voltei o envelope tava em cima do balcão.
Ramon subiu para o apartamento com a cabeça atordoada. Ninguém nunca, jamais, lhe escrevera uma linha sequer – e a sua primeira correspondência era aquilo, um envelope macabro. Sentou-se à mesa da cozinha, abriu o envelope e tirou uma folha de papel amarelo. Havia só uma frase escrita com tinta dourada: "Oi, querido, nós te convidamos para vir nos conhecer pessoalmente." Não havia assinatura, mas Ramon sabia que os remetentes moravam no Grande Hotel Lancaster. Desembrulhou o binóculo e foi para a janela, assim que posicionou o instrumento todas as janelas se iluminaram como se o edifício fosse uma árvore de Natal. Fascinado, Ramon constatou que as cortinas estavam abertas.
O binóculo era fantástico, muito melhor que a luneta, podia ver cada detalhe do pessoal esquisito. E o que constatou, com espanto, é que todos estavam usando trajes a rigor. As mulheres cobriam-se de vestidos de zemberlines, tafetás de seda, shantungs, georgettes e jacquards – uns vestidos com decotes mostrando grandes porções de bustos graciosos cobertos com jóias de muitos matizes cintilando numa disputa feroz com a claridade ofuscante dos apartamentos. Os homens trajavam smokings, as exceções eram um militar com a farda carregada de medalhas e um outro indivíduo com um uniforme engraçado, principalmente por causa do chapéu de três pontas que lembrava Napoleão Bonaparte. Apesar de sua sala estar mergulhada na escuridão, Ramon concluiu que os indivíduos do edifício de alguma maneira não só tinham conhecimento que estavam sendo observados naquele minuto, como tinham atitudes do mais puro exibicionismo.
No quinto andar uma loira alta, linda, ergueu uma taça de champanhe em sua direção, um sorriso magnífico no rosto de linhas harmoniosas, perfeitas. Fascinado, Ramon ficou muito tempo analisando-a, mentalmente fantasiando que acariciava aqueles cabelos dourados que lhe caíam pelas costas em graciosas ondas – em suaves cascatas, diria alguém com espírito poético. Ela mandou um beijinho com a ponta dos dedos unidos, depois pegou o celular e, ainda olhando-o, teclou. O seu telefone fixo na sala estridulou. Ramon ficou confuso, cheio de perguntas para si mesmo: como ela sabia o seu número? Porque só podia ser ela fazendo a ligação, ninguém jamais tentou falar com Ramon naquele telefone e, é claro, o aparelho já estava instalado quando ele alugara o imóvel. Correu atarantado para a mesinha, ao atender suas mãos cobriam-se de gotículas de suores gelados. Antes de abrir a boca, ouviu:
– Olá, meu querido, você não vem?
A voz que chegava ao seu ouvido era absolutamente encantadora, quente, envolvente, sexy e acariciante. Ramon engoliu salivas várias vezes antes de perguntar:
– Vocês estão dando uma festa?
– Estamos sim, uma festa de despedida. Antes de raiar o dia estaremos todos de mudança, não é mais possível adiar a implosão desse maravilhoso hotel.
– Vão embora?!
– Nosso Mestre encontrou um castelo magnífico no Sul da França. Está em ruínas, é claro.
– Não façam isso, eu não quero – disse Ramon, infantilmente.
– Temos que mudar, querido. Fazemos isso há muito tempo, não é um inconveniente, muito pelo contrário. É tão bom mudar de ares! E na França agora é outono, você não acha o outono a estação mais linda do ano?
– Prefiro o inverno...
– Oh, que fofinho! Você vem?
– Não tenho traje a rigor...
– Vista o seu terno de formatura.
– Como sabe que ainda tenho meu terno de formatura?
– Meu querido acredite, eu sei de tudo. De tudo!
– Será que o terno ainda me serve?
– Claro que serve! Olha, vou esperar você na recepção do hotel. Por favor, não demore, querido... – A mulher desligou, Ramon correu para a janela, posicionou o binóculo – o apartamento estava vazio, todos os apartamentos estavam vazios. Então ouviu o som de valsa, era isso, a festa estava começando. Rapidamente dirigiu-se para o guarda-roupa, retirou o terno escuro de gabardine de quando se formara em Ciências Contábeis, vestiu-o, calçou meias amarelas – não as tinha da cor preta –, o par de sapatos social um tanto empoeirado, uma gravata fina cinzenta, olhou-se no espelho.
– Estou bem? – Perguntou-se.
– Sim, estou ótimo! – Respondeu baixinho, sorrindo para o seu reflexo.
O porteiro sentia profunda aversão por Ramon, só lhe dirigia a palavra quando era absolutamente necessário. Mas naquele momento, vendo-o de terno e gravata, não resistiu à curiosidade.
– Vai para algum velório? – perguntou.
Ramon sorriu – era a primeira vez na vida que o porteiro via o rosto daquele rapaz abestalhado abrir-se num rasgo de alegria.
– Vou a uma festa.
O porteiro largou o livrinho de faroeste aberto em cima do balcão e emparelhou-se a Ramon, ambos dirigiram-se para a porta de saída.
– Posso saber onde é o baile? – Perguntou assim que chegaram à calçada.
– Ali. – Ramon apontou a fachada do Grande Hotel Lancaster.
– Só se for pra dançar com fantasmas, o hotel tá completamente abandonado, se duvidar até as baratas e ratos fugiram dali.
– Não está vendo todas as luzes acesas? – Estranhou Ramon.
–Cara, o que você tem, tá maluco, é? O lugar tá mais escuro que a alma do capeta.
Ramon indignou-se, até um cego perceberia aquela explosão de luzes. Achou que o porteiro estava querendo gozar com sua cara. Mas a música, não estaria ouvindo? O som estava bem alto, um som de música orquestral ao vivo, com toda certeza uma orquestra inteirinha estava tocando no salão de bailes do Grande Hotel Lancaster.
– Não está ouvindo a música?
– Você é retardado? Que música?
– Você não passa do sujeito mais ignorante do mundo. Um completo idiota. – Ramon indignou-se.
O porteiro, morrendo de rir, ficou plantado na calçada observando Ramon atravessar a rua. Então parou de rir ao ver que o esquisitão adentrava o hotel em ruínas. Ele teve que admitir, Ramon era amalucado, é verdade, mas que coragem! Santo Deus, que coragem!
Algumas horas depois, Ramon saiu daquele hotel sinistro com a felicidade estampada em cada centímetro de seu rosto, passou pela portaria, chamou o porteiro e disse:
– Osvaldo, poderia me fazer um favor?
– Claro! – Respondeu o porteiro, esperando por mais uma maluquice de Ramon.
– Se alguém perguntar por mim, diga que mudei para a França. – Disse adentrando o prédio.

O Hotel Lancaster foi implodido no dia seguinte. Ramon foi encontrado três dias depois, enforcado em seu apartamento.


fonte: http://conteudoperverso
.blogspot.com.br/2013/08/os-estranhos-moradores-do-hotel.html

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